A história oficial do nascimento do cinema tem creditado aos Estados Unidos e à França a proeza de tal invenção. Sem dúvida, os traços daquela nova tecnologia se fizeram presentes nas iniciativas da corporação de Edison e na dos irmãos Auguste e Louis Lumière. Quando, porém, o cinema começa a construir suas formas narrativas, a Itália tem uma razoável contribuição com a realização de Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, que exerce influência inclusive em David Griffith na construção de O Nascimento de uma Nação (1915) e o cinema passa a “imitar” o tempo de exposição que tinha o espectador frente a uma ópera. De certa forma, dá-se, a partir daí, a construção do cinema como arte de longa-duração.

Ao longo da história do cinema, a Itália deu outras grandes contribuições, dentre as quais se destaca a construção de uma forma de ressignificar o conceito de realismo cinematográfico, que acabou se chamando precisamente de Neo-Realismo Italiano. Ainda que não tenha se constituído num movimento estético substantivo, seus seguidores – dadas as condições objetivas de produção ainda no final da II Guerra Mundial, quando a Itália foi palco principal – aprimoraram o fazer cinematográfico com a incorporação de alguns “princípios” a uma história de ficção que ressaltaram o grau de realismo: a participação de atores não profissionais, as tomadas de cena majoritariamente em externas, em  cenários reais, a iluminação natural, uma câmera mais solta e a temática incrustada na realidade presente. Ou seja, os filmes falavam de uma realidade concreta, que todos os espectadores reconheciam como “real”, numa forma “menos encenada”, mas que, ao mesmo tempo, constituía um produto artístico-cultural poético de determinado cineasta. Grandes nomes e obras marcaram esse momento: Roberto Rossellini (Roma, Cidade Aberta), Giuseppe De Santis (Arroz Amargo), Luchino Visconti (A Terra Treme) e Vittorio De Sica (Ladrões de Bicicletas).

Desse movimento cultural surgiram alguns cineastas que, nas décadas seguintes, elevariam a cinematografia italiana a um patamar de exclusividade mundial, contribuindo para mudanças fundamentais no modus operandi do cinema. Calcados no conceito do cinema de autor, Michelangelo Antonioni, Federico Fellini, Pier Paolo Pasolini e Bernardo Bertolucci ofereceram filmes mais intimistas da psicologia humana, sem deixar de fazer a crítica social. Mais próximo do vigor político, ou que tomou para si temas da realidade política, é o cinema de Gillo Pontecorvo, Pietro Germi, Elio Petri, Francesco Rosi e Giuliano Montaldo. A perfeita combinação da sensibilidade humana, humor e crítica social é encontrada nos filmes de Ettore Scola, Mario Monicelli, Liliana Cavani, Lina Wertmüller e dos irmãos Taviani. Sergio Leone alterou a forma de o cinema retratar um dos seus gêneros pioneiros, o western. Criou aquele que foi chamado de neo-western, ou o western spaghetti. Dos anos 1980 para o século XXI continuam sendo importante as várias contribuições que o cinema italiano, ou cineastas italianos, oferecem ao mundo do cinema.

O cinema de crítica social ou que tem por preocupação analisar as relações humanas em época de profundas alterações promovidas pela tecnologia, mas com tonalidades da comédia, na esteira do cinema de Scola e Monicelli, pode ser encontrado em cineastas que têm como premissa o nome Paolo. O primeiro, Paolo Sorrentino, que filma desde o início dos anos 2000, já nos ofertou verdadeiras obras-primas reconhecidas em premiações internacionais: As Consequências do Amor (04), Il Divo (08), A Grande Beleza (13) e Juventude (15), quase todos com seu ator preferido Toni Servillo. Mais recentemente, Paolo Virzi teve seu reconhecimento em obras como Tutta la Vita Davanti (08), A Primeira Coisa Bela (10), Capital Humano (13) e Loucas de Alegria (16).  Paolo Genovese vem tentando se firmar na análise de dois núcleos sociais fundamentais para se compreender a sociedade atual: os amigos e a família. Com esses temas, sempre misturando crítica com humor, realizou  Immaturi (11), a continuação Immaturi – Il Viaggio (12), Una Famiglia Perfetta (12), Tudo Culpa de Freud (14) e Perfeitos Desconhecidos (16).

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Vou me debruçar na análise deste último. Perfeitos Desconhecidos é um daqueles filmes que aparentemente não tem estofo para ir além da comédia rala de costumes, mas que se revela progressivamente encantador com a reviravolta provocada pelo realizador Genovese. A trama é simples: três casais marcam um jantar na casa de um deles para “jogar conversa fora”, ao mesmo tempo em que apreciam um eclipse lunar. Da reunião participa também um amigo comum, que iria levar enfim a namorada para que todos a conhecessem, mas que aparece sozinho. Na verdade, tudo é um pretexto para mais uma reunião entre amigos. Tudo parece se encaminhar para mais um encontro convencional e rotineiro até que uma das mulheres sugere um jogo capaz de mudar por completo essa aparente tranquilidade, bem como a percepção que os protagonistas tinham de seus pares até o roteiro provocar uma reviravolta inesperada e fisgar o espectador. Há, nesse sentido, uma leve relação com a trama do ótimo Coerência, de James Ward Byrkit, mas que não tem o clima de suspense/horror deste. E, sim, uma pitada do sarcasmo de Deus da Carnificina, de Polanski.

O filme oferece aos espectadores a oportunidade de conhecer cada um dos personagens, conforme eles são apresentados na trama. Mas o jogo proposto, aparentemente inocente e lúdico, vai revelar facetas desconhecidas de cada um por seus próprios parceiros. A ideia é simples: como todos possuem um aparelho celular individual (e quem hoje não possui?), todos devem depositá-los sobre uma mesa e quando qualquer um receber uma ligação, esta deverá ser atendida em viva-voz, ou quando chegar mensagem esta deverá ser revelada. Afinal, nenhum casal tem segredos para com seus parceiros. Ou não? O que parecia uma brincadeira inocente se transforma numa situação incômoda para quase todos os integrantes do grupo, com o jantar prometendo um fervilhar de emoções. Não é possível revelar mais do que esta premissa a fim de não estragar o prazer de quem irá apreciar a obra.

No entanto, podemos nos questionar sobre esse aparente inocente “jogo da verdade”. Nós não temos nada a esconder? As pessoas que estão próximas a nós, nós as conhecemos? Nossos amigos, nossa parceira (ou parceiro), nossa família, você os conhece realmente? Penso que nós conhecemos apenas a versão do que cada um decidiu mostrar. E isto me inclui, no sentido de que me esforço para revelar o que mais me parece interessante mostrar aos outros. Somos multidimensionais e multifacetados e há um verdadeiro jogo de interesses egocêntricos e presunçosos por trás dessas revelações. Nossos segredos agora se encontram nestes aparelhos, verdadeiras caixas-pretas particulares. Exatamente por isso são tratados com cautela, como um bem precioso e protegidos por senhas. É como expressa o cartaz original do filme: cada um de nós tem três vidas – uma pública, uma privada e uma secreta.

Numa sociedade que prima pelo consumismo, no qual a tecnologia exerce um incrível fascínio, e pelo individualismo como premissa de status de vida, o que esperar quando uma inocente proposta de revelar o que cada um carrega em seu celular é colocada como condição para o real conhecimento do outro? Quantos de nós estaríamos dispostos a exibir todo o conteúdo dos nossos aparelhos celulares e smartphones? Quais os segredos que escondemos daqueles que nos são mais próximos? Será possível manter uma relação estável, seja esta de amizade ou amorosa, contando sempre a verdade? Perfeitos Desconhecidos é um filme que faz um retrato relevante e importante de nossas relações contemporâneas, ao mesmo tempo em que nos oferece a oportunidade de refletir sobre a importância dessa tecnologia em nosso cotidiano, capaz de se constituir numa verdadeira bomba-atômica com potencial de arrasar por completo um envolvimento amoroso.

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O diretor Genovese tem o pendor de saber imprimir o ritmo adequado das revelações e da narrativa, onde os momentos de humor são eficazmente rompidos com trechos pontuados pelo mal-estar e tensão, com o drama mesclado com a comédia revelando os perfis mais intrínsecos dos personagens, como que a desafiar o talento individual dos atores e atrizes. Perfeitos Desconhecidos é uma pequena pérola cinematográfica que sabe conjugar as relações modernas, o drama, a comédia e o comentário crítico sobre nossa sociedade com as novas tecnologias que deveriam proporcionar o bem-estar e a aproximação das pessoas, mas que provocam afastamentos e guardam os mais íntimos (e, quem sabe, os mais angustiantes) segredos do nosso ser.