“Eu nasci aos 16 anos, numa cidade ensanguentada por corpos de peito e pau”: uma das primeiras (e impactantes) falas de Maria Moraes, personagem e coautora de “Maria”, já reflete uma das direções que o documentário de Elen Linth busca seguir, traçando relações entre questões de gênero, resistência e o urbano.

Maria Moraes tem 19 anos, e é travesti, estudante, ativista e artista. Entre cenas dela em sua casa, na universidade e nos seus trajetos do dia-a-dia, vemos Manaus, seus prédios, ruas e igarapés – e, ao explorar as falas da personagem fora de quadro e sua postura de cabeça baixa por alguns dos lugares por onde passa, o filme constrói um discurso delicado e importante sobre a vivência e descoberta de Maria enquanto travesti e sua relação de resistência com a cidade que, por mais bonita que seja, oprime o diferente.

Nesse sentido, um dos grandes trunfos do filme de Elen Linth é não apenas observar Maria, mas permitir que a mesma conte sua história. Assim, ela se torna não apenas personagem, mas uma narradora que interfere diretamente no que se vê na tela. Questões como afeto, violência, corpo e identidade perpassam suas reflexões, e o que se tem, portanto, é um filme que traça uma investigação poética conjunta, aos moldes de propostas como as de Petra Costa (Elena e O Olmo e a Gaivota), por exemplo.

O documentário ganha maior pungência ainda quando, de seu tom intimista e pessoal, passa a buscar nas performances de Maria a abrangência de um universo que, embora faça parte da vida da personagem, a atravessa e vai além: a cena da “Rua 10 de Julho com Ferreira Pena, número 37”, por exemplo, deixa de ser só sobre Maria e se torna um momento simbólico sobre a vivência de tantas travestis em um mundo tomado por violência e resistência.

Embora em alguns momentos as performances acabem quebrando o ritmo do filme e quase levando a um tom de repetição em excesso (como o momento do isopor), “Maria” é uma obra ousada e importante, principalmente num contexto em que o mundo está, na falta de uma expressão melhor, cada vez mais doido. O documentário de Elen Linth faz parte da Série Territórios, projeto da Eparrêi Filmes que busca contar a história de mulheres da cidade – e fica aí a curiosidade e expectativa pelos próximos episódios desse projeto.