É comum que qualquer debate acerca do status dos povos indígenas brasileiros hoje resulte em uma não-comunicação. A complexidade do assunto traz ao cidadão comum, que pouco aprendeu ao longo da vida sobre esses grupos autóctones, dificuldade para fundamentar argumentações sobre o tema. Mais confortável é ignorar o tópico ou se entregar ao senso comum dos discursos midiáticos, no qual o povo indígena é não raro retratado de maneira superficial, sendo sua voz invisibilizada ou, pior ainda, distorcida, dando-se espaço à fala simples e direta de outro grupo: o dos proprietários de grandes terras como fazendas de soja ou mate, eternos oponentes dos grupos indígenas na disputa de chão. Sob o manto da defesa do progresso do país e dos valores morais “originais” da família, é muito mais fácil nos atermos à perspectiva de quem tem o poder de dominar a exposição de seus discursos.

Por sorte, filmes como “Martírio” existem. A partir dele, o diretor Vincent Carelli traz ao público uma chance ímpar para tentarmos ver um assunto ainda latente em nossa história sob a perspectiva dos que nos parecem mais estranhos e distantes, os indígenas – no caso, o foco é a população do grupo Guarani Kaiowá, que ocupava originalmente uma grande faixa de território que se estendia pela Região Centro-Oeste.

Sincero e nada trivial

Podemos dizer que o documentário é sincero com o espectador. O filme deixa claro de onde partem suas asserções e do lado de quem ele se posiciona, o que inclusive é pontuado em seu modo participativo, com equipe aparecendo eventualmente nas próprias imagens, fazendo perguntas diretamente aos personagens ou entregando uma câmera para que eles façam registros audiovisuais. Ao mesmo tempo, “Martírio” equilibra essa característica com uma pesquisa cuidadosa, que fundamenta a defesa dos indígenas como donos das terras que são acusados de invadir.

Dessa forma, Carelli traz importantes registros dos Guarani Kaiowá feitos por ele desde os anos 1980 até os anos 2010. A partir dessas imagens, o filme dá conta de situar o espectador sobre o status da luta pela terra não só nesse período, mas também num período anterior. “Martírio” apresenta documentos, trechos de cinejornais e outros registros audiovisuais que remontam até ao século XIX para explicar quem afinal foram os invasores da ampla área que se estende pelo Mato Grosso do Sul, estado no qual o agronegócio prospera desde os anos 1960.

Tudo isso é mostrado de maneira simples, com imagens de arquivo, algumas animações e um off nada rebuscado em linguagem, tornando fácil ao público entender a perspectiva adotada para a obra e se familiarizar com ela, dando ao discurso dos indígenas um peso tão ou mais impactante do que as falas que tanto ouvimos ao longo de uma vida inteira com pouco ou nenhum contato com eles, mas que definem esses indivíduos no mar de pérolas cotidianas do senso comum (exemplo: “índio é preguiçoso/bêbado/vagabundo”; “índio rouba terra de fazenda para ficar ‘no bem-bom’”; “índio de camisa e celular não é índio” etc.).

É louvável que “Martírio” consiga fazer isso sem tornar o assunto cansativo – especialmente se considerarmos que o documentário tem quase três horas de duração. Expor a conjuntura histórica e acompanhar o cotidiano de penúria dos grupos acompanhados por Carelli seria a receita perfeita para o uso mais tradicional de formato documentário, no qual ele poderia ser facilmente confundido com uma grande reportagem televisiva. Porém, o diretor consegue deixar o produto final ter um formato simples, mas nunca um conteúdo e forma simplórios.

Assim, o documentário faz algo que os meios tradicionais geralmente falham em alcançar: humanizam de fato os indígenas colocados como personagens. Ainda que com costumes e modos de ver o mundo diversos dos do homem “civilizado”, é possível criar empatia para com pessoas que se sentem marginalizadas, injustiçadas, que perdem entes queridos e choram seus mortos, que se preocupam com o futuro de suas crianças, que rogam a seu deus por forças para perseverar em suas dificuldades.

[…] cujos sobrenomes melhor nem pronunciar

Por sua vez, é impossível não perceber como “Martírio” contrapõe essa realidade com as colocações dos representantes do agronegócio, que aparecem no documentário pontualmente na figura de fazendeiros, seguranças particulares e políticos influentes. O que vemos nas imagens de Carelli captadas por 30 anos expressa um descompasso para com o modo como essas poderosas figuras se colocam como vítimas. Curioso observar também a ironia de como algumas falas e imagens de apoio referentes aos grandes donos de terras colocam os leilões de bois, criação de milícias contra os indígenas, vaquejadas e barzinhos embalados por sertanejo universitário como uma realidade cultural hipoteticamente mais válida que o modo de vida dos povos indígenas brasileiros.

Em duração, esses momentos são curtos, mas o impacto é eficaz. A visão de progresso rapidamente se mostra sob a perspectiva da pujança do capitalismo – e, consequentemente, através do apagamento da cultura dos Guarani Kaiowá. Nessa guerra econômica e ideológica, sobra ainda para os pequenos produtores, sempre citados como vítimas das “invasões e ataques indígenas”, mas cuja fala ou imagem se faz ausente no filme, que foca na bancada ruralista e em fazendeiros cujos sobrenomes melhor nem pronunciar para não ter problemas.

Mesmo demarcando inimigos, “Martírio” não funciona como mera propaganda de causa. Não se vê ali apontamentos simplórios ou soluções fáceis para os conflitos de terra em termos práticos, nem se conclui o papel de vilão ou herói da Funai, que é citada em tantas falas de maneira negativa. Muito menos se entra no mérito dos conchavos políticos por trás de hipotéticos apoios à causa indígena, que descamba para falas que vem tanto de indígenas quanto de fazendeiros criticando a postura da ex-presidenta Dilma.

O filme termina tentando fazer com que vejamos o lado dos Guarani Kaiowá com a mesma sensação de familiaridade com que vemos os discurso de seus detratores. A partir daí, seguimos por nossa conta e risco ao pensar qual o nosso papel do debate, ressoando a autonomia e o senso crítico que o tema demanda de uma sociedade que tanto se esquiva de se reconhecer nesse embate, e é justamente esse o seu maior trunfo: fazer pensar.