O Cine Set inicia uma série de entrevistas com realizadores amazonenses que fizeram trabalhos de destaque em anos anteriores, que cumpriram papel importante no cenário local, avançando técnica e narrativamente.

Para iniciar, conversei com Cristiane Garcia, que em 2007 lançou “Nas Asas do Condor”, curta-metragem inspirado no conto de Milton Hatoum, que atravessou o desafio de ser convertido para 35 milímetros e ainda ousou ao inserir uma animação no seu decorrer, além de ter contado com um grande número de profissionais envolvidos (muitos desses permanecem na cena audiovisual local), participado de festivais nacionais, e alcançado o respeito do público.

Cine Set – Como foi realizar um filme em 35mm? O desafio é maior? Quais foram as diferenças e dificuldades encontradas no processo?

Cristiane Garcia – Quando o roteiro venceu o prêmio Daycoval no Amazonas Film Festival de 2006, havia quase 30 anos que Manaus não tinha um filme em 35mm. “Nas Asas do Condor” é um filme de curta metragem que, desde o princípio, foi encarado como um projeto grandioso, da concepção ao resultado final. Embora tenha sido rodado em alta definição para posterior transfer para 35mm, toda a sua produção foi pensada para a “tela grande”: as locações, os figurinos, cenários, fotografia, a animação em 3D e 2D, o som direto, a trilha sonora, a montagem e até o tipo de negativo que iria receber o produto final. Para todos os profissionais envolvidos, exceto para Jean Robert César – experiente diretor de produção de longas metragens, minisséries e documentários – o “Nas Asas do Condor” foi a mola propulsora para muitos profissionais que hoje atuam no mercado audiovisual de Manaus. Um dos inúmeros desafios durante o processo foi a falta de recursos suficientes para completar o orçamento do filme. Mas isso também foi uma escola para nós. Corremos atrás, batemos em muitas portas e conseguimos parceiros, apoiadores e patrocinadores que acreditaram no projeto. Ao final, o filme foi realizado com aporte 10 vezes maior que prêmio. Até hoje uma vitória em termos de audiovisual produzido em Manaus.

Cristiane Garcia Nas Asas do CondorCine Set – Houve muitos profissionais envolvidos no projeto? Como foi liderar um time com muitos profissionais?

Cristiane Garcia – A ficha técnica é imensa. Assistentes, produtores, eletricistas, contra-regras, motoristas, pilotos de voadeiras, comandante de embarcação, figuração, a equipe da Central Técnica de Produção liderada pelo Marcos Apollo Muniz, que construiu o avião em tamanho real, a Amazonas Filarmônica inteira, Coral do Amazonas, compositores da trilha sonora, maestros e por aí vai. Convidamos os melhores profissionais de Manaus e 90% da equipe técnica trabalhava, e ainda trabalha, com publicidade, algo que faz parte da história do cinema nacional. No início bateu um certo medo, tamanha a responsabilidade, mas a experiência de Jean Robert César, na direção de produção e do Paulo Cezar Freire, diretor de fotografia que me acompanha desde o curta “Identidade”, foram determinantes no resultado que alcançamos. Todos da equipe estavam muito empenhados, afinados com o projeto e sabiam da importância do filme para o Amazonas e o que cada um tinha que fazer. Não houve problemas. Isso me ajudou a me concentrar mais na direção.

Cine Set – Puxando da memória, lembra da ficha técnica?

Cristiane Garcia – Citando alguns:

Direção: Cristiane Garcia / Roteiro: Cristiane Garcia e Carlos Garcia / Direção de Fotografia: Paulo Cezar Freire / 1° assistente de Câmera: Yure Cesar / Direção de Produção e Produção Executiva: Jean Robert César / Animação: Ink Estúdios de Animação / Trilha Sonora Original: Paulo Marinho, Alexandre Santana e Cristiane Garcia / Direção Musical: Paulo Marinho / Regência AM Filarmônica: Marcelo de Jesus / Direção de Arte: Eliana Andrade / Preparação de Elenco: Nonata Silva / Elenco: Francisco Carvalho, Ana Cláudia Motta, Tiago Matos, Lucas Daniel, Roberto Guedes, Paulo Afonso, Rodrigo Baggio, Elias Monteiro, Roci Souza e Soraia Freitas / Narração: Dori Carvalho / Diretor de Áudio: Ricardo Moraes / Maquiagem: Frankc Padilha / Montagem: Paulo Cezar Freire.

Cine Set – Como foi a repercussão do trabalho em Manaus?

Cristiane Garcia – Foi um filme muito aguardado por todos que se interessavam por cinema em 2007, por ser a ruptura do silêncio de quase 30 anos. As mídias sociais, que hoje respondem pela divulgação em massa de eventos e obras artísticas “quase nem existiam” há oito anos e mesmo assim a sala do Cinemais lotou para a estreia do filme. Foi muito gratificante.

Cine Set – O Milton Hatoum assistiu ao filme? O que ele achou?

Cristiane Garcia – O apoio do Milton foi muito importante desde o momento que eu decidi realizar o projeto e fiz o primeiro contato com ele. Depois de algum tempo, pela falta de apoio pra realizar a obra, pensei em desistir, mas ele me ligou dando força pra que eu fosse em frente. Interveio junto à editora Companhia das Letras para liberação dos direitos sobre a obra. Aí veio o prêmio Daycoval, o total apoio da Secretaria de Estado da Cultura e os patrocínios conquistados. Quando o filme saiu da ilha de edição, fiz questão que Milton fosse o primeiro a assistir. E assim aconteceu. Fiquei muito emocionada, pois ele chorou durante a sessão e ao final disse “agora vou ter que reescrever o conto baseado no filme”. Se tornou um admirador e divulgador do curta, chegando a promover exibições em escolas de São Paulo. É a primeira obra dele adaptada pro cinema e pra mim é mais que um filme: é um filho muito querido.

Cine Set – Por quantos festivais o filme participou? Qual foi o mais marcante? Por quê?

Cristiane Garcia – O “Nas Asas do Condor” é uma obra infanto-juvenil. Nele mostramos uma Amazônia lúdica onde a floresta que amamos nos dá alegria. O filme passou em mais de 30 mostras e festivais em todo o país, como concorrente e como convidado. Já perdi as contas. Até hoje professores de Geografia, de Literatura, de Língua Portuguesa, dos mais diferentes estados do Brasil me passam e-mail pedindo cópia pra utilizar como material didático nas escolas. E o interessante é que oito anos depois o filme continua sendo exibido em festivais. Ano passado, por exemplo, fui informada da exibição do mesmo em um Festival Internacional em Pernambuco e uma Mostra de Animação na Ufam aqui em Manaus. O “Nas Asas do Condor” é daqueles filmes que já nascem com vida própria.

O Festival Internacional de Cinema Infantil – FICI, que acontece no Rio de Janeiro, me marcou bastante. No final da sessão, pais e professores vinham falar comigo emocionados e encantados com a obra, com palavras de agradecimento de quem viu no filme uma semente de amor e de respeito à Amazônia e à infância.

Cine Set – Depois de tantos anos, você reviu o trabalho? Mudaria alguma coisa do resultado final?

Cristiane Garcia – Hoje meu olhar está mais maduro como diretora e vejo o “Nas Asas do Condor” como fruto de um momento histórico, do esforço, do sonho e do amor que cada pessoa envolvida no projeto sentia e sente pelo cinema. Não mudaria absolutamente nada no filme. É o meu clássico.

Cine Set – De que maneira este filme influenciou na sequência da sua carreira de diretora?

Cristiane Garcia – Já tinha feito um outro curta de 4 minutos, o “Identidade”, que ganhou alguns prêmios em festivais locais. Mas fazer o “Nas Asas do Condor”, viajar com ele para outros festivais, vê-lo ser premiado e conhecer o que acontecia no cinema fora de Manaus, pra mim foi um divisor de águas.

Cine Set – Depois do “Abóbora”, o que mais você produziu?

Cristiane Garcia – Um documentário que ajudou a trazer muitas conquistas para a comunidade em questão, e o qual tenho muito orgulho de ter realizado, o “14 de Janeiro: Terra, Samba e Santo”. Foi o principal documento histórico da Comunidade do Barranco, na rua Japurá, para o reconhecimento nacional, através da Fundação Palmares, como o segundo Quilombo Urbano do Brasil. Mais recentemente filmei o curta de ficção “Aquário”, lançado ano passado no Centro de Mídias do Amazonas, em sessão para mais de 20 mil alunos da rede pública de ensino.

Cine Set – O que acha da atual fase da produção audiovisual do Amazonas?

Cristiane Garcia – Tenho acompanhado muito pouco das produções recentes. Mas, independente disso, fico feliz em ver a classe se mobilizando em busca de uma política pública pro audiovisual e para o cinema. Ainda temos muito a avançar e um dos caminhos são Leis de Incentivo à Cultura que vão fazer a “roda girar” de forma perene. É bom para os artistas, empresários e para o espectador. Acredito que vamos conseguir.

Cine Set – É possível encontrar “Nas Asas do Condor” na internet? De que maneira o público atual pode assistir ao trabalho?

Cristiane Garcia – Não está na internet e não há uma forma do público atual ter acesso ao trabalho a não ser por meio de novas exibições em festivais e de mostras. Penso que a SEC deveria disponibilizar para a população todas as obras fomentadas pelo governo, tanto as que foram fruto do AFF como as do Proarte, catalogadas e dentro de uma videoteca com finalidades de pesquisa e de entretenimento.