Se há um diretor relativamente novo no cenário do cinema norte-americano ao qual podemos associar a alcunha de autoral hoje é Jeff Nichols. Com quatro longas no currículo (todos estrelados pelo excelente Michael Shannon), ele imprime um senso próprio de minimalismo na forma de apresentar a narrativa e as complexas vivencias internas de seus personagens.

Em “Midnight Special”, Nichols atinge um ponto de equilíbrio. Ele traz a emoção, suscitada pela trama quando foca nas relações familiares, e a razão, quando a obra toma ares de filme de perseguição e ficção científica realista (na medida do possível). Isso se dá a partir do pequeno Alton (Jaeden Lieberher), um menino que apresenta poderes que permitem que ele tenha acesso a informações ultrassecretas do governo norte-americano.

Alton, que vivia isolado numa comunidade religiosa, é levado pelo pai, Roy (Shannon), e o amigo de infância dele, Lucas (Joel Edgerton) para fugir do FBI. A agência vê um risco à segurança nacional nas informações captadas pela criança e também pelo fato de que os poderes de Alton são altamente destrutivos, uma vez que ele consegue emitir um forte raio a partir de seus olhos, capazes de destruir um satélite no espaço.

Lacunas que dão significado

São muitas as lacunas que a direção e o roteiro de Nichols deixa ao contar a história do filme, mas o que poderia ser um ponto negativo à trama se prova um envolvente trunfo. Não sabemos, por exemplo, o que exatamente levou Roy a permitir que o pastor da comunidade cuidasse de seu filho, ou o que fez com que ele se separasse da mãe biológica da criança, Sarah (Kirsten Dunst, numa participação discreta, porém, correta). No entanto, a construção dessas lacunas, ao invés de distanciar o espectador, faz com que este queira se envolver mais para saber se os personagens atingirão seus objetivos.

Um outro ponto importante gerado a partir desses vazios é a mescla de espiritualidade e ciência. Porque os dois temas não são nunca tratados diretamente, nem mesmo nos momentos em que o agente da NSA Paul Sevier (Adam Driver) entra em cena, a subjetividade do espectador direciona a interpretação  deste para todo o filme, tornando-o como que “dois em um”.

Essa fruição peculiar permite também que espectadores com diferentes níveis de atenção possam curtir o filme. Alton fala em línguas, decifra informações secretas sem explicação aparente e entra em contato com seres cuja origem não sabemos, mas nada é dado gratuitamente. Porém, vemos o suficiente para que uma parte do público entenda a trama em suas linhas gerais, saindo satisfeito da experiência, enquanto que a outra parte, focada na interdiscursividade do filme, sinta-se igualmente contemplado com um filme complexo e bem conduzido. Resumindo, é bom cinema.

God is in the house

Os não-ditos de “Midnight Special” também abrem espaço para que tanto um fã de histórias de alienígenas quanto uma pessoa religiosa se sintam contemplados pelo tratamento dos sentidos pretendidos ao filme. Aos religiosos, aliás, o longa presta um serviço importante: lidar com questões do mundo espiritual sem uma pegada doutrinária, com a sensibilidade e introspecção que o tema exige e que produções como um “Deus não está morto”, por exemplo, sequer sonhou em alcançar.

Ok, o filme tem figuras questionáveis, como o pastor interpretado por Sam Sheppard, que estoca armas em sua comunidade e elege capangas para trazer Alton de volta ao seu domínio. Porém, há ali também as pessoas simples  do grupo, que podem ter de estranho as vestimentas e penteados ultrapassados, remetendo ao visual que tradicionalmente se associa aos mórmons, mas seus modos de expressão e a fé que eles tem na criança são facilmente assimiláveis ao espectador, pois evocam em menor escala o fanatismo e em maior, a busca por respostas e conforto, sensação essa experimentada por figuras como Elden (David Jensen), um dos ex-comunitários que passa pelo caminho dos fugitivos.

As camadas de “Midnight Special” perpassam ainda a dinâmica das relações familiares, o que enriquece o filme e retoma um item de verdadeira obsessão na filmografia de Nichols. Alton busca suas origens, celestiais ou alienígenas, que sejam, enquanto que seus pais seguem o mais instintivo impulso de protege-lo, numa clara metáfora religiosa. Ainda assim, o que reverbera é o sentimento puro de cuidado e amor familiar em meio as adversidades.

Let the midnight special/shine a light on me

Ao desvelar essas camadas de sentidos, quem definitivamente mais ganha são os cinéfilos. Observando o filme em blocos, brilha primeiro a atuação. A direção concisa de Nichols conduz com maestria o reduzido elenco, encabeçado novamente por Michael Shannon, que não precisa nunca pesar a mão no drama ao mostrar-se como um pai que faria tudo por seu filho. A resiliência da personagem de Dunst segue pela mesma linha, enfrentando o dilema de ver o filho partir novamente. O pequeno Lieberher segue o estilo comedido de interpretação dos colegas adultos e cria uma figura mística, mas sóbria, dando total realismo aos momentos em que ele conduz os passos dos mais velhos na jornada de “Midnight special”.

Já Joel Edgerton assume uma posição análoga a do espectador: interpretando um amigo de infância de Roy com quem ele não mantinha contato há anos, Lucas se vê envolvido na trama a partir do mesmo salto de fé que Nichols exige do espectador para que este compre a proposta do filme. O salto é um convite também ao personagem de Adam Driver, que aqui mostra versatilidade ao abrir mão da pegada mais expansiva de muitas de suas atuações, em nada lembrando, por exemplo, a teatralidade de seu trágico vilão Kylo Ren na franquia Star Wars. De quebra, o plot twist de Sevier faz com que a participação menor do ator no filme seja bem marcante.

“Midnight special” faz ressoar aos cinéfilos itens queridos de nossa informal formação. O filme funciona como uma discreta homenagem a obras como “Contatos imediatos de terceiro grau” (1977) e “The Twilight Zone” (1964). Aponta para os momentos iniciais da carreira de Steven Spielberg e evoca, nas cores e detalhes da direção de arte, um clima retrô dos anos 1970,  algo que até mesmo o título do filme referencia por ser o mesmo de uma canção do Creedence Clearwater Revival.

Por mais sóbria que seja a atmosfera do filme, o que contribui para que a suspensão de descrença funcione de mãos dadas com a pegada realista da condução do filme, Nichols nunca comete o (suposto) erro de deixar “Midnight Special” frio demais ao espectador médio. Para isso, ele amplifica os momentos de maior ação e violência ao deixa-los apoteóticos, porém breves em duração. É o que acontece quando a caçada a Alton se intensifica, por exemplo, ou quando o menino ameaça perder o controle de seus poderes. A exceção é a belíssima sequência final; sem mais detalhes, digamos que o diretor toma sem pressa longos minutos para maravilhar o público e fechar o ciclo da aventura de Alton. E é esse o sentimento que o filme imprime a nós quando os créditos sobem: a maravilha de ver uma obra que realmente quer que sintamos algo, independente de nossas leituras sobre ela.