Biografias são sempre complicadas de fazer, principalmente se é sobre um personagem de destaque, um nome que atravessa o tempo através da sua obra. Sempre haverá algum elemento importante da vida do biografado que ficará de fora, e ter sabedoria para determinar o que entra ou não no filme, e de que maneira as informações são apresentadas é tarefa das mais complexas.

Pode-se dizer que o experiente diretor Mike Leigh optou por um estilo não muito convencional para apresentar o seu personagem principal, o que certamente afasta o seu filme de um resultado comum, mas também corre o risco de afastar decisivamente o espectador do filme. Esses ingredientes se somam a um filme absolutamente brilhante nos aspectos técnicos, o que faz com que o resultado final seja um cinza bastante curioso, que ora é estimulante, ora enfadonho.

O filme conta a história do pintor impressionista Joseph Mallord William Turner, sem dúvida um dos maiores nomes da pintura inglesa, que se dedicou de maneira mais destacada às pinturas marítimas. Sem parecer muito preocupado em estabelecer uma linha narrativa clara, Leigh nos apresenta a Turner já adulto, com duas filhas de um relacionamento ignorado pelo pintor, e mostra de que maneira ele lidava com a inspiração para o seu trabalho, a relação de carinho com o pai, a relação conflituosa com os parceiros de profissão, com as mulheres, e com a (alta) sociedade da Londres do século XIX.

Leigh nos apresenta a tais informações de maneira pouco ortodoxa, fazendo com que a apresentação dessas informações soem enfileiradas, sem necessariamente levar a história adiante. Por se tratar de um filme com narrativa linear, obviamente os anos passam e o personagem vai mudando de perspectiva e objetivos, mas ainda assim permanece um desenvolvimento estranho, afinal Leigh se afasta tanto dos clichês que aparentemente se esquece que um filme precisa conquistar quem o assiste, e para isso espera-se ver uma história que, mesmo que não siga uma cartilha com regras para fisgar a atenção do espectador, aparente saber pra onde vai, e que esse final vale a pena ser esperado.

Veja bem, nem de longe o filme é uma tragédia, e nem fica a sensação de tempo perdido assistindo-o. A questão, porém, é que para os que não conhecem mais de perto a vida e obra do pintor, é quase um exercício de paciência se manter atento ao filme, pois os acontecimentos exibidos fazem parte de um cotidiano com poucos elementos narrativos, que nos apresentam bem o personagem, mas ainda assim não justifica a necessidade de acompanha-lo, pois o filme não aparenta ter um foco definido, parece satisfeito em apenas mostrar o seu dia a dia.

Mesmo que se trate de um gênio.

É claro que há interesse em conhecer como pensa um dos grandes nomes da pintura, a maneira como observava a paisagem sempre em busca de um novo quadro, a forma rude como tratava os quadros dos seus colegas de profissão, suas relações amorosas… mas, na minha opinião, isso ainda não é o suficiente, não nos faz permanecer atentos, ainda mais com cenas extremamente longas, e outras que ganham contornos aleatórios, que parecem não somar mesmo se tivermos em vista a ideia de apenas conhecermos o personagem, como as cenas em que Turner acompanha uma apresentação musical, e a interminável sequência em que um crítico de arte avalia o trabalho do pintor Claude Lorrain.

Crítica: Mr. Turner, de Mike Leigh

Mr. Turner

Mas se a narrativa é falha, visualmente o filme é arrebatador. Os planos longos, com grande profundidade de campo, são perfeitos para ilustrar o genial design de produção de Suzie Davies. Os cenários são inacreditáveis (a sala de pintura de Turner é um show à parte), e compõem situações repletas de diversos detalhes legitimando com segurança a Londres do Século XIX, num trabalho que se aproxima do nível visto em outro marco do cinema, “Barry Lyndon” (1975). Apesar de adorar a direção de arte de “O Grande Hotel Budapeste” (2014), o Oscar desta categoria merecia outro dono.

E além do figurino e da trilha-sonora chamarem a atenção, quem se destaca muito é a fotografia de Dick Pope, que emulando a maestria de Turner na função da luz nos seus quadros, utiliza a iluminação de maneira inteligente, principalmente as cenas em que há alguma janela sendo a única fonte de luz do recinto, dessa forma ilustrando o olhar de Turner, sempre em busca de alguma paisagem de fora.

Outro responsável direto pelas maiores qualidades do filme é, claro, a atuação segura de Timothy Spall. Criando um sujeito bruto, mas com surpreendente leveza, Spall insere várias camadas num personagem que quanto mais o conhecemos, mais vemos como ele poderia ser contraditório e brilhante. Turner rosna, grunhe (literalmente) como resposta ao ser chamado, cospe nos seus quadros, mantém unhas enormes, mas ao mesmo tempo realiza quadros de enorme beleza, e possui certo encanto em relação às mulheres. É preciso ter um grande ator para conseguir tantos elementos, e Spall preenche a cena com maestria.

Aliás o elenco todo do filme é muito bom, e muito bem conduzido por Leigh, que estabelece uma mise-en-scène rica (favorecido imensamente pela direção de arte), em que cada ator, mesmo no segundo plano do quadro, faz a diferença na concepção visual da história. Um exemplo brilhante disso é Dorothy Atkinson, que interpreta a empregada de Turner. Repare na reação dela quando visitas analisam os quadros do pintor.

Colocando tudo isso na balança, e levando em consideração como é baixa a média das produções cinematográficas recentemente, pode-se dizer que “Mr. Turner” alcança um resultado satisfatório, pois o que falta de interesse na narrativa, transborda no aspecto visual, e na performance de Spall. Apesar dos pesares, bom filme.