O cinema muitas vezes extraiu sua força do pior que o ser humano pode fazer. Existem muitos filmes “do mal” que fizeram sucesso e entraram para a história do cinema, porque, afinal, a arte não precisa ser edificante ou só falar sobre as coisas boas da vida. O Animal Cordial, suspense da diretora Gabriela Amaral Almeida, é um filme “do mal” e parece até se orgulhar disso. Trata-se também de um filme “de cerco”, um exercício de gênero confinado, tanto quanto um Assalto à 13ª. DP (1976) de John Carpenter ou um A Noite dos Mortos Vivos (1968) de George Romero. O espectador fica preso num único ambiente por uma hora e meia com personagens, quase todos desagradáveis, para dizer o mínimo, e eles fazem coisas ruins uns com os outros. A diferença é que não há uma ameaça externa, como no caso dos filmes citados: o mal está lá dentro, trancafiado junto.

A história se passa numa noite, num restaurante situado numa rua de algum bairro de São Paulo, perto do final do expediente. Inácio (vivido por Murilo Benício) é o dono do estabelecimento, e ele está em atrito com alguns dos funcionários, incluindo o cozinheiro homossexual Djair (Irandhir Santos e sua cabeleira compõem o personagem). Há poucos clientes jantando lá e o lugar está quase fechando… É então que entram dois assaltantes querendo roubar o lugar, e o resto não deve ser contado para o espectador, para deixa-lo descobrir por si mesmo o desenvolvimento da história.

É um filme que busca o real incômodo do espectador. No início, Gabriela e a diretora de fotografia Bárbara Alvarez mantém sua câmera próxima – até demais – dos personagens, em primeiros planos, e fazem uso de ângulos estranhos, criando um desconforto – somado ao fato de que quase todos os personagens aparentam estar a um passo de gritar uns com os outros desde o início, fica estabelecida a atmosfera sufocante do longa. Imagens de um coelho sem pele sendo preparado e de carne crua também dão o tom deste começo do filme. As paredes vermelhas que levam à cozinha e demais ambientes sugerem uma atmosfera infernal. Depois, quando a violência começa a explodir na tela, o contraste com a musak na trilha sonora e com a elegância do lugar – que vai sendo erodida aos poucos – aumenta a estranheza do que vemos na tela. Aliás, a presença de uma trilha eletrônica com sintetizadores, que aos poucos substitui a música diegética inofensiva, também parece evocar Carpenter e seus “filmes de cerco”, do qual Assalto ainda é o maior representante.

O sentimento de inquietação se estende à condução da história em si, que parece aproveitar todas as oportunidades para querer surpreender o espectador. E acredite, há surpresas: este é o tipo de filme no qual coisas malucas acontecem devido às ações dos personagens, e embora elas deixem o público atônito num primeiro momento, os fundamentos para elas são todos colocados no início do filme e trazidos à vida pelos intérpretes.

Os atores se entregam totalmente aos papéis e às loucuras que alguns têm que fazer: Benício convence muito no início como o empresário para o qual “bandido tem que morrer” e essa figura dá ao filme a sua relevância dentro do nosso momento histórico; e Luciana Paes tem um desempenho multifacetado e corajoso, inserindo dentro do filme um subtexto sob o papel feminino na situação e o que leva algumas mulheres a se sujeitarem a apoiar o poder masculino.

Pena que, quanto mais o filme avança e se aproxima do desfecho, começam a surgir alguns problemas… A personagem de Paes se torna problemática, com uma mudança a mais de temperamento sendo ditada pelo interesse dos roteiristas, e a partir de certo ponto os vilões do filme deixam de parecer com as figuras interessantes e imprevisíveis do início e se tornam psicopatas de filmes, que põem para tocar uma trilha sonora contrastante para cometer seus homicídios.

As caracterizações acabam expondo a verdadeira natureza do filme: de uma interessante parábola sobre a natureza distorcida do Brasil, ele vira um exercício de gênero, aparentemente mais preocupado com uma imagem de impacto do que com a lógica ou a construção anterior. O Animal Cordial quer falar sobre a natureza humana e até incluir alguns comentários em forma de subtexto sobre as diferenças de classe e preconceitos da sociedade brasileira – além do dinheiro, outra coisa que separa Inácio de Djair é a pouca disfarçada homofobia. O filme até consegue fazer essas coisas, mas parece tão determinado em mostrar o pior do ser humano que começa a forçar a barra, com o tempo transformando seus personagens em meras figurinhas, capazes de fazer coisas bizarras apenas porque os roteiristas querem.

Nada deixa isso mais claro que o desfecho do filme, que acaba deixando uma ponta de alento para o espectador, uma nota dissonante justamente por causa disso. Esse final não chega a acabar com o filme, mas o diminui ao substituir a coragem e o senso de loucura da história por uma artificialidade. O Animal Cordial impressiona com sua atmosfera e a quantidade de sangue, mas acaba não sendo tão “do mal” quanto parecia que seria a princípio.