O cinema já passou nestes seus mais de 100 anos de história por diversas transformações. Desde a chegada do som e das cores ao atual uso desenfreado do 3D, evoluções surgem gradualmente e sempre causam um grande frisson.

Porém, após a sensação causada pela novidade, o que realmente interessa e fica para o público são as boas histórias, capazes de emocionar, gerarem reflexão ou apenas nos fazer rir ou chorar.

E é justamente por isso que “O Artista” é uma obra tão marcante.

Você deve estar pensando que demorei um século para falar do filme francês que ganhou o Oscar 2012. Entretanto, acredito que isto se faz necessário devido ao fato tão alardeado dele ser uma obra em preto-e-branco e muda em pleno século XXI ter ganhado mais crédito que o simples fato de ser uma obra simples, mas comovente, com dois grandes atores em ótimos personagens, uma trilha sonora majestosa, uma direção segura e possuir, pelo menos, três cenas clássicas.

O longa mostra a história do galã do cinema mudo George Valentin (Jean Dujardin) no final da década de 20, quando as produções faladas mudam o panorama de Hollywood. Empolgados com a nova tecnologia, o público se desinteressa pelos filmes produzidos pelo então astro, fazendo com que a carreira dele afunde e suas finanças entrem em colapso.

Para piorar, ele vê a ascensão de Peppy Miller (Bérénice Bejo), garota que ajudou no início da carreira em Hollywood. Ela, porém, apaixonada por Valentin, vai tentar tirá-lo do ostracismo

“O Artista” nada seria sem a sua brilhante dupla de protagonistas: Dujardin e Bejo.

Vencedor do Oscar de Melhor Ator, Jean Dujardin é um daqueles astros que possui brilho próprio: o domínio de cena apresentado logo na sequência inicial é brilhante, revelando timing cômico preciso e dando uma noção clara do caráter egocêntrico e canastrão de Valentin.

Ele também mostra ser bem versátil, transitando naturalmente das cenas de comédia do início do filme para o drama que domina a segunda metade da história.

Já a atriz argentina Bérénice Bejo é uma atriz de extremo carisma quando está em cena: não há como deixar de torcer pela personagem dela ao vê-la dançar com uma energia ímpar para ser aprovada em um teste de elenco.

A variação que faz entre as duas fases da carreira de Peppy é sutil, mas marcante: repare nas caras e bocas dela durante o período do cinema mudo e a atuação mais contida quando chegamos nos filmes falados.

O domínio da dupla é tão grande que atrapalha o desenvolvimento dos atores coadjuvantes, tornando os veteranos John Goldmann e James Cromwell quase esquecidos.

O único que consegue um destaque maior é o cãozinho Uggie, que de tão bom que está em um momento decisivo do longa, chega a assustar.

“O Artista” ainda tem um protagonista invisível: a trilha sonora de Ludovic Bource. Durante os 100 minutos de projeção, as composições do maestro francês dão um ritmo ao filme que faz o espectador se lançar de vez na trama, além de não cansá-lo.

Seja com temas alegres ou tristes ou tensos, a trilha é figura marcante, conduzindo o público aos resultados que a obra pretende alcançar, principalmente em seus três momentos chaves.

Já direção de Michel Hazanavicius é elegante e eficiente, pois não traz para si a atenção do filme: ele parece saber que o brilho vem, acima de tudo, de seus atores e da trilha de Ludovic.

O trabalho maior do cineasta está ao trabalhar nos pequenos detalhes que incluem desde a passagem de uma cena para outra usando elipses típicas dos filmes da época à coloração repentina de trechos que indicam sutilmente uma outra mudança que vai abalar a estrutura do mundo do cinema, além da fotografia do longa, dosando bem as cores fortes do início pujante de Valentin com as sombras da fase decadente do astro.

Além disso, é espirituoso ao fazer homenagens a grandes astros e clássicos da história do cinema (a cena do jantar entre Valentin e a esposa, por exemplo, remete a um momento inesquecível de “Cidadão Kane”, por exemplo).

Como nem tudo no mundo são flores, o roteiro de “O Artista”, apesar de simples, sofre altos e baixos, sendo o ponto mais fraco desta bela obra. Além do já citado pouco interesse nos outros personagens da história que não sejam os protagonistas, o longa francês não consegue convencer bem no real motivo que o personagem de Dujardin tem em não aceitar fazer filmes falados.

Apesar de declarar que não considera a nova fase tão artística quanto à outra, talvez outro elemento pouco explorado na história, se encaixe melhor como a razão verdadeira: a dificuldade de George Valentin em se expressar bem em inglês, devido a uma possível origem estrangeira do astro. O fato era comum na época, vide duas das maiores estrelas do cinema mudo, Ramon Navarro e Rodolfo Valentin (este, a maior inspiração para o protagonista de “O Artista”) serem, respectivamente, mexicano e italiano.

O que poderia acontecer com a imagem de Valentin caso se descobrisse uma voz terrível? Ou com sotaque forte, em um país que defende suas raízes de maneira tão firme como os EUA?

Infelizmente, é algo que o roteiro do longa não aborda e cria uma lacuna significativa, fazendo com que boa parte do segundo ato do filme seja arrastada, além de transformar Valentin em um tolo, já que muitas vezes sua relutância parece ser apenas orgulho ferido.

Apesar dessa falha, “O Artista” nos brinda com três cenas para entrarem como clássicas da história do cinema.

SPOILERS – NÃO LEIA CASO NÃO QUERIA SABER DETALHES CRUCIAIS DO FILME

– a sensualidade e bom humor de Bérénice Bejo ao vestir o casaco de Valentin e conduzir uma fictícia dança entre os dois é daqueles momentos de graça que nos faz relembrar gênios do humor como Charles Chaplin, Frank Capra e Billy Wilder. A cena ainda termina com um importante detalhe que irá mudar a trama.

– o pesadelo de Valentin ao escutar o barulho de um copo ao bater na mesa dá início a um momento em que brilham a edição de som e a atuação de Dujardin. Uma cena que somente o cinema é capaz de proporcionar.

– já a sequência final faz com que angústia, tragédia e humor sejam um só. Tudo isso por causa de uma trilha sufocante de Ludovic, edição cuidadosa, atuações fortes (incluindo aí a do cachorrinho) e um roteiro inteligente (BANG!).

FIM DOS SPOILERS

Lembrando em muitos momentos o clássico “Cantando na Chuva”, “O Artista” faz jus a todos os prêmios vencidos neste início de ano. Pode não ser a mais original das histórias, mas emociona e encanta o público.

Fato mais importante do que qualquer estética ou estilo que possa ser empregado.

o artista pôster

PS.: “O Artista” estreou nacionalmente no dia 10 de fevereiro. Chega agora aos cinemas de Manaus no dia 30 de MARÇO!

Foram 48 dias de atraso (um mês e meio). Enquanto isso, cidades com menos salas, população e poderio econômico receberam o longa-metragem francês antes da capital amazonense. É lamentável ver que estamos na rabeira da prioridade das distribuidoras quando se fala cinema alternativo ou mais adulto.

Pode parecer besteira, coisa pequena perto dos problemas que temos no nosso dia-a-dia.

Talvez até seja, porém, acredito que um local possa se desenvolver e crescer mais quando, entre outras coisas, discutimos  nossas atrações culturais, o que nos é oferecido em termos de shows, literaturas, obras de arte e cinema também, não apenas consumi-lo.

Enquanto “O Artista” ficou ausente de nossas 37 salas de cinema (serão 49 até o fim do ano), vimos pelas telas locais “clássicos” como “John Carter”, “Cada um Tem a Gêmea que Merece”, “O Pacto”, “Protegendo o Inimigo”, “Motoqueiro Fantasma 2”.

Não que estes filmes não tenham que estrear nos cinemas, afinal há público para eles. O que não aceito é não termos um espaço para filmes mais alternativos, de grandes cineastas ou de outros países fora do eixo hollywoodiano, obras diferentes das que são oferecidas semanalmente.

Com isso, a opção é baixar filmes, coisa que faço apenas em última ocasião, já que considero que assistir o filme no ambiente de um cinema faz com que se realce coisas que na televisão, por melhor que seja, não consegue transmitir.

Enfim, vou morrer batendo nisso. Ou me mudar de cidade.

Acho a segunda solução mais fácil.

PS 2: Consegui assistir “O Artista” em uma viagem a São Paulo há três semanas. Somente assim para ver este filme.

PS 3: Ah! O documentário em 3D sobre balé dirigido pelo Wim Wenders, “Pina”, está sendo exibido em Belém. A capital paraense possui 19 salas.

Sabe quando “Pina” vai chegar aqui?

Adivinha….