Ah, a ironia… na história do cinema, o título “O nascimento de uma nação” (“The Birth of a Nation“, no original em inglês) remete a um sabor agridoce: esse é o nome do filme de 1915 dirigido por D. W. Griffith, uma obra extremamente importante por conta de suas contribuições para o desenvolvimento da linguagem cinematográfica, mas que choca pelo conteúdo abertamente racista. É também o nome do filme de 2015, dirigido por Nate Parker, apontado pela crítica especializada como uma nova obra-prima (e potencial ganhador do Oscar 2017) e tido como um verdadeiro manifesto contra o racismo.

Celebração foi o que não faltou para Nate Parker até agosto. O longa saiu do Festival de Sundance com os prêmios de Melhor Filme tanto pelo público como pelo grande júri. Esse foi um dos fatores que impulsionou a Fox a comprar o filme por uma quantia generosa de US$17,5 milhões, a maior compra já registrada de um filme independente do festival, o que atraiu todos os olhares para ele.

Críticos de veículos influentes como a Variety, New York Magazine e Consequence of Sound avaliaram a obra como excelente. Assim, a campanha do Oscar para “The Birth of a Nation” parecia começar com o pé direito, especialmente após a academia divulgar um corpo votante com maior variedade étnica. Afinal, em tempos de hashtags como #BlackLivesMatter, o momento social e político dos Estados Unidos resvala para anseios de maior representatividade no cinema, consolidando não só novas hashtags, como a #OscarsSoWhite, mas também novas demandas. É o momento perfeito para um filme como o de Nate Parker. Quer dizer, era.

A reviravolta

Neste mês de agosto, veio à tona a notícia de que uma mulher cometeu suicídio em 2012. O nome dela não é divulgado, mas é fato que ela teria acusado Parker e Jean Celestin (amigo de Parker e co-roreirista de “The Birth of a Nation”) de tê-la estuprado em 1999, quando eles estudavam na Universidade Penn State. Os registros dão conta de que a mulher estaria embriagada, não podendo consentir nenhuma relação sexual, mas testemunhas divergiram quanto a isso em seus relatos. Resultado: na época, o diretor foi inocentado, mas Celestin chegou a ser condenado, com um novo julgamento sendo ordenado em 2005, ano em que a vítima decidiu não testemunhar novamente, o que oficialmente encerrou o caso.

Quando a revista Variety entrevistou o irmão da moça em 16 de agosto, o caso Nate Parker veio à tona para o grande público e pode estar dando uma guinada na carreira do diretor-prodígio. O homem, identificado apenas como Johnny, reconta que o caso de estupro teve um efeito terrível em sua irmã, que entrou em depressão profunda e tentou se matar várias vezes antes de finalmente concretizar o ato, afirmando também que a sociedade não deveria celebrar um predador sexual por conta de um filme.

A morte do nascimento de uma nação?

A repercussão da matéria da Variety foi intensa nos EUA e gerou reações imediatas. O próprio Nate Parker escreveu uma longa nota sobre o assunto, a qual publicou em suas redes sociais. Nela, o diretor lamentou saber do falecimento da moça e se solidarizou com a família, explicando que ele próprio é hoje pai de filhas e mantendo a afirmação de que não se envolveu em um estupro, e sim, em uma relação sexual consensual. Ainda assim, a declaração de Johnny vem pesando aos olhos do público: para o irmão da vítima, Nate se safou de condenação por “detalhes técnicos”.

Imediato também foi o efeito da matéria da Variety: exibições especiais de “The Birth of a Nation” foram canceladas tanto nos EUA como no exterior. O American Film Institute, por exemplo, realizaria uma exibição com debate nesta semana, mas a chefia do instituto decidiu adiar temporariamente o evento, mas sem confirmar quando ele aconteceria. O Toronto International Film Festival seguiu a mesma levada, com o sumiço do longa da programação confirmado por uma pessoa envolvida na organização.

Vários são os analistas que avaliam se a carreira de Nate Parker, ou, pelo menos, a campanha de “The Birth of a Nation” ao Oscar, pode ter chegado ao fim. No The Hollywood Reporter, Stephen Galloway foi benevolente com o diretor, mas aponta que ele terá um desafio enorme para se reposicionar ao olhar do público, ainda que todas as investigações sobre o estupro tenham culminado com sua inocência. Porém, ele pontua que a Fox e os votantes da Academia e outros eventos estão numa “sinuca de bico” ainda mais complicada: como equilibrar a carreira do filme com possíveis acusações de racismo (caso o filme suma dos festivais) e machismo (caso as acusações sejam ignoradas por eles)? Galloway, porém, não esquece que vários foram os casos em que pessoas ligadas à indústria cinematográfica costumam se safar de acusações de crimes, o que sem dúvida pesa aos olhos cada vez mais atentos do público atual.

Já no site Awards Daily, Sasha Stone avalia vários casos em que controvérsias (bem ou mal fundamentadas) arruinaram a carreira de filmes em suas campanhas rumo ao Oscar. Na avaliação de Stone, grande parte do público americano de fato vê Parker como um estuprador que gerou toda sorte de traumas à vítima, e que nem mesmo a mensagem de justiça e igualdade racial parece capaz de prevalecer perante o furor causado pela cobertura midiática do caso. Ela também pontua que o caso Nate Parker é o primeiro de Hollywood com tanta cobertura e participação do público via mídias sociais, o que o faz diferente, por exemplo, da situação de Roman Polanski nos anos 1970. O timing também se mostra contra o diretor, uma vez que o documentário “The Hunting Ground” causou recentemente muita comoção nos EUA sobre os casos de estupro em campus de universidades.

Partindo para o The New York Times, outro veículo de grande alcance e influência, Roxane Gay não mediu palavras: na avaliação da articulista, as declarações atuais de Parker sobre o ocorrido soam falsas, mostrando pouca empatia real com a vítima. Além disso, o fato de ele continuar contando com a colaboração de Celestin, que chegou a ser condenado, é absurda se ele realmente visse a época do estupro como um “momento doloroso”, tal como expôs em entrevistas e na declação em rede social. Para completar, Roxane Gay também vê como problemáticas outras afirmações do diretor, tanto sobre o caso como sobre outros assuntos, as quais ela interpreta como homofóbicas. Ao final, ela afirma que decidiu não assistir a “The Birth of a Nation”, ainda que sua história, baseada na vida de um ex-escravo que comandou uma rebelião, seja relevante.

No The Hollywood Reporter, nada menos que quatro comentaristas foram convidadas a abordar a questão: Ashley Weatherford , Rembert Brown , Lindsay Peoples e Dayna Evans. O veredito: provavelmente o timing da divulgação da morte da vítima foi proposital, para balançar a corrida do Oscar, mas isso não exime Nate Parker dos meandros do caso e nem da forma como ele vem lidando com isso, por mais que a identificação racial (algumas das comentaristas são afro-americanas) torne tentador tentar defender “The Birth of a Nation”.

Ruim para um, bom para outros?

A situação de Parker e seu “The Birth of a Nation” parece cada vez mais complicada. O The Hollywood Reporter publicou na última quarta-feira (24) uma matéria na qual conversou com alguns membros da Academia sobre o caso. Maria Nasatir, uma das entrevistadas, afirmou não poder mais “separar o filme do diretor que atacou uma mulher”, e que não assistirá ao longa. Outra votante, Rutanya Alda, afirma que verá o filme porque “vê tudo”, mas que será difícil manter um julgamento neutro após acompanhar o caso e saber dos relatos de que Parker e Celestin ainda perseguiram a vítima de estupro após ela relatar o fato às autoridades na época.

Cartaz oficial de “The Birth of a Nation” já gerava reações de choque antes mesmo da polêmica envolvendo Nate Parker vir à tona.

Os votantes Mitchell Block e Tab Hunter afirmam ser necessário separar autor e obra, afirmando que verão o filme por conta de todo o frisson que vinha causando antes da polêmica do diretor vir à tona. O Indie Wire, outro importante site de cinema norte-americano, já repercutiu na quarta-feira (24) mesmo essa discussão trazida pelo THR, lembrando que a Fox Searchlight ainda tentará sustentar a campanha do longa quando possível até se definirem os candidatos ao Oscar.

No entanto, o caso Nate Parker cria o precedente para um novo procedimento na compra de filmes independentes por estúdios com interesse em realizar a distribuição desses longas. Afinal, a Fox Searchlight investiu uma quantia extraordinária com “The Birth of a Nation” e já pode estar sofrendo prejuízo ao ter de evitar a exposição do diretor na mídia, além do trabalho de tentar contornar os cancelamentos das exibições. É provável que a prática de checagem do passado dos novos artistas em evidência seja incentivada nos estúdios para assegurar a lucratividade das transações, comuns em festivais como Sundance.

Sobre os votantes a Academia, não se sabe até agora qual dos posicionamentos prevalecerão na hora de escolher os filmes do Oscar 2017. O que sabemos, no entanto, é que o Oscar fará de tudo para evitar a controvérsia do #OscarsSoWhite, e se “The Birth of a Nation” não for mais uma opção de filme com temática racial e elenco diverso, outros filmes terão de preencher o vazio deixado por ele. Dentre os filmes estrelados e/ou dirigidos por afrodescendentes que se beneficiam desse cenário estão “A United Kingdom” (drama histórico de Amma Asante estrelado por David Oyelowo e Rosamund Pike), “Queen Of Katwe” (da cultuada diretora Mira Nair, com Lupita Nyong’o e, novamente, David Oyelowo) e “Hidden Figures” (baseado em fatos reais, dirigido por Theodore Melfi e estrelado por Taraji P. Henson e Octavia Spencer). Há males que vem para o bem?