O cinema americano hoje em dia está careta. Muito afeito a fórmulas, com medo de ousar e desagradar o público cada vez mais afastado das telas. Então eis que surge algo como O Lobo de Wall Street, uma verdadeira esbórnia sem limites de drogas, sexo e ode ao dinheiro. É a história de um vigarista e um pecador, contada pelas lentes de um cineasta que já deu voz a outros vigaristas e pecadores ao longo da sua carreira, Martin Scorsese.

Jordan Belfort é esse vigarista. Ele veio de origens humildes, mas decidiu não permanecer na pobreza e, como todo bom americano, foi atrás do dinheiro, indo trabalhar no centro do universo financeiro mundial, Wall Street. Porém, logo vem o baque: a crise econômica no final dos anos 80. Forçado a se reinventar, Belfort chamou uns amigos e lhes ensinou uns macetes para vender ações de baixo valor para os incautos ansiosos por um dinheiro fácil. Ao fazer isso, ele fundou a corretora Stratton Oakmont e ficou milionário…

Nesse princípio da sua história, Jordan Belfort não fez nada realmente ilegal (a ilegalidade propriamente dita só começou depois)… Ele apenas fez parte do jogo da sociedade americana, aquele cujo objetivo é o enriquecimento fácil e rápido. E como ele mesmo está contando sua história, em alguns momentos até quebrando a quarta parede e falando para o publico, rapidamente somos tragados para dentro desse mundo absurdo. Aliás, o próprio Belfort contou sua história num livro que serviu como base para o filme – e o excepcional roteiro é de autoria de Terence Winter, mais conhecido como criador e produtor da série Boardwalk Empire, produzida por Scorsese.

É um mundo onde não realmente existe o conceito de excesso. As drogas têm de ser cada vez mais potentes, as mulheres cada vez mais bonitas e as pilhas de dinheiro, cada vez maiores. Scorsese recria este mundo com seu estilo já aprimorado em seus filmes anteriores, Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) – O Lobo de Wall Street lembra bastante esses clássicos scorseseanos.

A exemplo desses outros clássicos sobre a corrupção, em Lobo a montagem é ágil, o uso de canções na trilha sonora é frequente e Scorsese cria suas habituais tomadas elaboradas e impressionantes. E sempre há aquela sensação no ar de que um dia, a festa vai acabar e os personagens irão pagar pelo seu comportamento sem limites. E a derrocada provém deles mesmos, das suas fraquezas e mesquinharias… Eles, no entanto, se divertirão muito antes disso (e o espectador também, transformado praticamente em cúmplice deles). E é interessante notar que os mafiosos de Os Bons Companheiros e Cassino parecem ter mais autocontrole e disciplina do que os personagens de “Lobo”, que teoricamente estão do lado certo da lei.

A energia do filme também provém dos atores, e no filme todo o elenco está sensacional. Leonardo DiCaprio parece ligado na tomada e tem no protagonista uma das melhores atuações da sua carreira. Seu desempenho é destemido, sem medo de parecer ridículo ou desprezível, e ele se entrega totalmente ao papel. E Jonah Hill no papel de Donnie, sócio de Belfort, traz uma energia quase maníaca à sua atuação, e junto com DiCaprio protagoniza alguns grandes momentos de comédia física – como a luta entre os dois enquanto ambos estão sob efeito de uma poderosa droga.

Além deles, o filme ainda conta com uma pequena, mas marcante, participação de Matthew McConaughey como o mentor de Belfort. O ator aparece por poucos minutos, mas é o dono absoluto desses minutos, nos quais introduz o protagonista à “selva” de Wall Street, cantando uma canção estranha que lembra um ritmo tribal. Ainda no elenco, curiosamente, aparecem diretores de cinema consagrados atuando, como Rob Reiner (que faz de forma divertida o pai de Belfort), Jon Favreau e Spike Jonze em pequenas participações.

Todos estão a serviço de um cineasta em pleno domínio dos seus poderes, que faz desta história um retrato da sua sociedade e dos tempos atuais. Scorsese ora se mostra contido, ora “enlouquece” junto com seus personagens, chegando a modificar o ponto de vista da narração em off em alguns momentos – Belfort não é o único a revelar seus pensamentos para o espectador. Ele também volta no tempo para mostrar novamente um evento como realmente aconteceu, após o termos visto pela percepção de um dado personagem. A veia satírica do filme fica clara desde o início, quando Scorsese começa o filme com um daqueles vídeos publicitários cafonas e falsos – no caso, o da empresa Stratton Oakmont.

Scorsese se mostra tão afiado em sua sátira que não poupa nem a nós, que estamos do lado de cá da tela. Passamos o filme inteiro ou nos empolgando com o absurdo daquele universo ou reprovando o comportamento do protagonista (que é, sim, um idiota, embora divertido) e daqueles ao seu redor. Pois nos instantes finais, o diretor parece nos desafiar: quem de vocês realmente não iria querer viver naquele estilo de vida?

Apesar das semelhanças com Os Bons Companheiros e Cassino, há pelo menos uma diferença fundamental entre eles e O Lobo de Wall Street. O mundo parece ter mudado desde os anos 1970 e 1980, quando as histórias reais que inspiraram aqueles filmes ocorreram. A corrupção e a falta de ética parecem não ser mais punidas. Nos seus filmes antigos apenas os mafiosos eram corruptos, em O Lobo não, é praticamente toda a sociedade. Só um artista muito seguro de si consegue transformar essa visão do mundo numa obra empolgante, divertida e que leva à reflexão. Não há nada de careta em O Lobo de Wall Street. Parece um trabalho de um cineasta jovem e cheio de energia, mas não é – foi feito por um senhor já na casa dos 70 anos. Um senhor que permanece apontando o caminho para o cinema, como já o faz há várias décadas.