O Brasil é um país corrupto. Estamos presos numa ciranda perversa que nos afeta a todos, desde o nível micro, das pequenas corrupções do dia-a-dia, até o nível macro, o das grandes roubalheiras que não desaparecem dos jornais. E quando se chega nesse nível mais alto, todos têm que dançar nessa ciranda: as grandes empreiteiras e empresas nacionais, todos os partidos e políticos, sejam eles de esquerda, direita ou centro, senão nada se faz neste país.

Essa é a tese central da série O Mecanismo, produção da Netflix criada por Elena Soarez e José Padilha, diretor dos dois Tropa de Elite e Ônibus 174 (2002). É difícil discordar dela. Mas, curiosamente, embora a série consiga montar o panorama da corrupção que ganhou os jornais nos últimos anos, algumas derrapadas questionáveis não conseguem deixar de atrapalhar o resultado final.

Não é uma série sobre pessoas: a produção é sobre eventos e sobre um mecanismo, como o próprio título diz. “Um câncer”, nas palavras do policial Ruffo (vivido por Selton Mello). Ele é o primeiro a investigar as ações do doleiro Ricardo Ibrahim (Enrique Diaz), análogo do nefasto Alberto Youssef – todos os personagens reais tiveram seus nomes trocados na série, e até a Petrobrás virou “Petrobrasil” e os policiais trabalham para a “Polícia Federativa”. Ibrahim acaba sendo o estopim para deflagrar a Operação Lava-Jato, que colocou corruptos na cadeia e abalou as estruturas do poder em Brasília.

Nenhum dos personagens é, de fato, muito desenvolvido pelos roteiros de Soarez – o panorama geral é mais importante que as peças individuais, o tema é mais importante que os personagens. É uma abordagem meio parecida com a de Narcos, mas assim como naquela série, ela também não é necessariamente favorável à criação de um drama de qualidade superior. E os roteiros têm outros problemas também: Mesmo com o bom ritmo da série – é muito fácil maratonar os oito episódios de O Mecanismo numa tarde – é de se perguntar por que precisamos ver a operação quase cancelada, depois retomada; personagens serem presos, depois soltos, depois presos de novo… O segundo e terceiro episódios são os que mais sofrem desse mal, dando a impressão de que pouca coisa acontece nestes capítulos e a série poderia ganhar mais tempo.

Além disso, o fato de a série esconder um desenvolvimento importante envolvendo o personagem de Selton Mello não faz muito sentido narrativo dentro da temporada, a não ser para pregar uma surpresinha no telespectador. E o voice-over, recurso narrativo usado à perfeição nos Tropa, é descartável e redundante em diversos momentos da temporada.

Os atores estão bem, notadamente Caroline Abras como a policial Verena, e Diaz – o ator é tão hábil ao fazer o seu tipo mau-caráter que dá vontade de limpar a tela da TV toda vez que ele sai de cena. Mas como não há muita personalidade nos personagens, não há muitas oportunidades para eles transcenderem o material. Parte da diversão da temporada é tentarmos adivinhar “quem é quem” no jogo da vida real. E quando analisamos as caracterizações das figuras da vida real dentro da série, bem… É quando outros problemas começam a aparecer.

Primeiro, Padilha e seus produtores afirmaram que buscaram uma imparcialidade ao elaborar a série.  Mesmo assim… Parece que a balança pendeu mais para um lado. Não deixa de ser bom – e até divertido – vermos o análogo do Aécio Neves sendo apresentado tomando um “comprimidinho” e se revelando um corrupto; ou o análogo do Juiz Sérgio Moro sendo caracterizado como um sujeito vaidoso e que se acha um “herói” – até o vemos lendo uma revista em quadrinhos na cama, um hábito conhecido do juiz. A série não glamouriza ou santifica os policiais federais e oficiais do ministério público.

Por outro lado…

Colocar na boca do análogo do ex-Presidente Lula a famosa frase do “estancar a sangria”, dita na verdade pelo senador Romero Jucá e que simbolizou o cinismo do impeachment de 2016, é uma barbaridade imperdoável, um absurdo capaz de espantar até quem é contra o Lula. Isso não contribui para o debate político atual do Brasil.

Aqui e ali vemos alguns bons diálogos: quando Ruffo diz a Ibrahim num dos últimos episódios  que não trabalha com criminosos, o doleiro retruca com a dose apropriada de cinismo por parte do ator: “É uma visão estreita essa, ainda mais no Brasil”. E apesar dos problemas, a série é envolvente por causa do tema, pegando um pouco mais de força nos seus episódios finais, que realmente colocam em contexto todo o panorama da corrupção no Brasil: chegou-se ao ponto de a corrupção das empreiteiras fazer o país de refém. O cenário que O Mecanismo pinta é desanimador, com o personagem de Mello chegando a desenhar num quadro o circulo vicioso da corrupção envolvendo empreiteiras, campanhas e partidos no Brasil.

O Mecanismo é, como toda obra de arte, uma visão pessoal de quem a criou e, neste caso, uma interpretação pessoal sobre um evento histórico cujas repercussões ainda estão sendo sentidas. É difícil discordar de algumas constatações da série, e é possível refutar outras. Como produto audiovisual, O Mecanismo é eficiente e facilmente assistível, além de nos deixar ao final com a forte sensação de que estamos lascados e sem perspectiva de melhora, a curto ou médio prazo. Ninguém gosta de ouvir isso, então talvez esta seja mesmo a grande força do seriado. Pena que algumas opções narrativas muito questionáveis tratem com desumanidade os personagens e as pessoas, do mesmo jeito que o tal do mecanismo trata os brasileiros.