Quem realmente era Michael Cimino? O diretor de cinema recém-falecido dirigiu ao todo sete filmes, roteirizou alguns outros, mas entrou para a história por duas das obras que comandou: O Franco Atirador (1978), vencedor dos Oscars de Melhor Filme, Diretor e Ator Coadjuvante para Christopher Walken, e o primeiro grande filme hollywoodiano a lidar com a Guerra do Vietnã e seus traumas; e O Portal do Paraíso (1980), seu projeto seguinte. Em minha opinião, O Franco Atirador é superestimado: o elenco está ótimo e o filme tem momentos de inegável força. Mas é bem reducionista, só olhando a guerra pelo lado americano, e possui um viés patriótico, com o retrato dos vietnamitas, sinceramente, beirando o racismo.

É sobre O Portal do Paraíso que quero falar aqui nesta edição da coluna Advogado de Defesa. Para quem não sabe, Portal é um dos maiores fracassos da história do cinema americano e foi o filme que basicamente sepultou o sonho da geração da Nova Hollywood dos anos 1970, aquele de um cinema mais autoral, pessoal e movido pela liberdade artística. Depois do Oscar, o estúdio United Artists deu carta branca a Cimino para fazer seu épico sobre um evento real ocorrido no Estado do Wyoming, conhecido como a “guerra do condado de Johnson”. O resultado foi uma produção caótica e que se arrastou por meses, e cujo orçamento pulou de 7,5 milhões de dólares para 44 milhões. O fracasso nas bilheterias fez com que a UA fosse vendida pouco tempo depois e, exceto por alguns poucos afortunados, a partir daí nunca mais os diretores voltariam a ter tanta liberdade junto aos grandes estúdios novamente. Cimino, por sua vez, ainda voltou a dirigir, mas apenas produções relativamente modestas e nunca mais experimentou o nível de aclamação de O Franco Atirador.

O Portal do Paraíso é o filme responsável pelo retrato dual e polêmico de Cimino. Era um gênio incompreendido ou um ególatra que destruiu a própria carreira? Talvez um pouco dos dois. Histórias assombrosas de bastidores do filme não faltam para dar suporte às duas alegações. Segundo relatos publicados sobre o filme, Cimino fazia sua equipe esperar horas pelas “nuvens perfeitas” e, de acordo com seu desejo de ver grama nas filmagens em locação, um sistema de irrigação caríssimo foi construído no campo. Cenários eram ora erguidos, ora destruídos, de acordo com fotografias do período. Seus atores ficaram tanto tempo esperando pelas filmagens que basicamente tiveram semanas só para aprender a andar de patins, em preparação para uma das cenas. A produção se estendeu tanto que o ator John Hurt gravou algumas das suas cenas em Portal, teve tempo de ir filmar O Homem Elefante (1980) para David Lynch, e depois voltou para continuar o trabalho no longa de Cimino.

Mais tarde, quando Cimino ressurgiu após alguns anos de sumiço – magérrimo e com uma aparência quase feminina, com rumores de cirurgias plásticas mal sucedidas – ele frequentemente era perguntado sobre O Portal do Paraíso e se recusava a discutir o filme. “Você pediria a Picasso para explicar Guernica?”, era uma resposta típica. Humilde, não?

Bem, O Portal do Paraíso é uma realização artística no nível de Guernica? Com certeza não, mas o fato é que muita gente foge dele por causa da sua fama de fracasso. E isso é injusto, pois o longa merece defesa, em minha opinião. Não é uma obra-prima injustiçada, mas talvez seja apropriado descrevê-lo como um “quase grande filme”, ou no mínimo um bom trabalho, intrigante e por vezes emocionante. E sim, é melhor que O Franco Atirador.

Verdade, não é um filme perfeito ou mesmo fácil de assistir, com suas três horas e meia de duração – dizem que o corte inicial de Cimino durava cinco horas e meia! Algumas cenas parecem não acabar nunca, como a celebração inicial em Harvard e a do ringue de patinação – mas o mesmo não pode ser dito da cena do casamento em O Franco Atirador? O personagem de Hurt não tem uma função clara na história, e seus diálogos repletos de citações e frases de efeito o tornam profundamente irritante. E embora o belo trabalho de fotografia de Vilmos Zsigmond (outro recém-falecido) mereça destaque, a paleta de cores limitada – tudo no filme parece marrom, preto ou vermelho – e a poeira que atrapalha a visualização chegam a tornar mais extenuante a experiência de se ver o longa em alguns momentos.

Mesmo assim, a fotografia das cenas externas é muitas vezes belíssima. Ao explorar as paisagens, a visão de Cimino aqui remete a John Ford e até ao seu contemporâneo Terrence Malick. Portal, tematicamente, é um faroeste revisionista e crítico, mas formalmente é filmado como um velho trabalho de Ford, romântico e grandioso.

O revisionismo provém do tratamento da história real pelo cineasta. A guerra do condado de Johnson aconteceu no final do século XIX, quando fazendeiros – na sua grande maioria, imigrantes – entraram em conflito contra os grandes criadores de gado que desejavam expulsá-los de suas terras. Era uma história que mostrava o lado negro e trágico dos Estados Unidos, um país frequentemente retratado no cinema como a terra das oportunidades e acolhedor para os imigrantes. Um filme crítico e profundamente dramático, na tradição de várias obras-primas da Nova Hollywood, e cujo tema permanece atual.

Para contar essa história, Cimino, que também escreve o roteiro, nos coloca próximos de três personagens. Kris Kristofferson faz o protagonista James Averill, o xerife do condado, um homem de origem abastada que resolve defender a população do lugar. Christopher Walken vive Nathan, um pistoleiro contratado pelos pecuaristas ricos para matar os imigrantes. Os dois homens são apaixonados pela mesma mulher, Ella, a dona do bordel, vivida por uma jovem e sensual Isabelle Huppert, num dos seus primeiros trabalhos. Cimino, inclusive, teve de brigar por Huppert, que nem falava inglês direito na época – a UA queria Diane Keaton ou Jane Fonda para o papel. Kristofferson é limitado pela introspecção do seu personagem, necessária para o clima melancólico da história, mas Huppert e Walken estão fantásticos.

Entre cenas ora idílicas ora sombrias, esses três personagens conduzem a narrativa até a eclosão da batalha entre os camponeses e as forças do governo, compradas pelos criadores de gado. A história desse conflito é uma mancha ainda hoje pouco conhecida na história americana, pois o extermínio de muitos fazendeiros imigrantes foi sancionado, ou pelo menos tolerado, pelo governo da época. A hipocrisia por trás dessa grande tragédia não é perdida por Cimino, e essa é uma das qualidades mais interessantes do filme – O Portal do Paraíso é um filme decididamente anti-capitalista, com o personagem de Jeff Bridges praticamente expondo a essência da obra ao dizer: “Está ficando perigoso ser pobre neste país”.

Em suma, um filme contraditório: belo e feio ao mesmo tempo, e um investimento milionário feito para criticar o capitalismo. Como seu cineasta. Era possível ter feito O Portal do Paraíso por muito menos dinheiro e de forma, digamos, “mais tranquila”? Sim. Era necessário que o filme e Cimino carregassem para sempre o estigma de destruidores do sonho da Nova Hollywood? Claro que não. Mas foi o fim de uma era: uma época em que os cineastas sonhavam com temas polêmicos e fortes e confiavam nos estúdios para dar respaldo aos seus sonhos. E também confiavam que as plateias fossem querer ver essas histórias. O Portal do Paraíso é o momento no cinema americano no qual essas confianças foram quebradas, e a partir daí o nome do jogo passou a ser “apostar no certo”: blockbusters, sequências, filmes de gêneros, adaptações de romances populares e, hoje, de histórias em quadrinhos.

Ainda vivemos no mundo pós-Portal do Paraíso: basta ver como o nome do filme reaparece, como um fantasma, sempre que ouvimos falar de problemas em grandes produções como Waterworld (1995) ou Titanic (1997), ou mais recentemente, de fracassos como John Carter (2012) ou O Cavaleiro Solitário (2013). Em meio a toda essa conversa, no entanto, o valor da obra artística se perde. Portal tem valor e o público deveria, no mínimo, conferir com seus próprios olhos e decidir sobre ele. Michael Cimino quis fazer uma obra que resistisse ao tempo e não mediu esforços, ou dinheiro, para isso. E trinta e poucos anos depois, ainda estamos falando dele, com alguns críticos e estudiosos do cinema defendendo Portal e melhorando a sua reputação. Cimino, a meu ver, era um sonhador, meio maluco e cheio de ego alimentado pela aclamação, e quando trabalham com cinema, uma arte cara e sujeita a vários fatores, às vezes sonhadores malucos pagam o preço. Talvez o sonho da Nova Hollywood fosse apenas isso mesmo, um sonho que desmoronaria a qualquer momento, uma batalha perdida, mas travada assim mesmo e de forma nobre, tal e qual a história que Cimino pôs na tela em O Portal do Paraíso. A batalha pode ter sido perdida, mas ainda está na tela, sendo vista mesmo depois de tantas décadas.


E não é essa uma das características a definir um filme de qualidade? O fato de resistir ao teste do tempo?