Dessa vez, vou começar de maneira diferente.

Aprendemos na faculdade de jornalismo que as informações mais relevantes devem estar colocadas no início do texto. Bom, claro que este não é um texto jornalístico, mas aqui utilizarei essa regra, e falarei logo de cara sobre o que considero mais importante de se falar nesse momento.

Todo mundo que diz gostar da sétima arte tem a obrigação de ir ao cinema para assistir “O Som ao Redor”!

Não apenas por ele ser um filme de grandes qualidades (falarei sobre isso depois), mas por ele ser um filme brasileiro, que tem algo a dizer, e o faz com enorme propriedade, alcançando um resultado que faz com que tenhamos orgulho do nosso cinema, e que, por não possuir um grande apelo popular, dificilmente chega a nossa cidade.

Não acreditei quando vi que “O Som ao Redor” havia chegado aos cinemas daqui. O filme que bombou no Festival do Rio, que teve uma interessantíssima carreira em festivais internacionais, que estava na lista de críticos norte-americanos como um dos melhores filmes do ano, que havia conseguido um retumbante sucesso de crítica, estava aqui, a nossa disposição!

E para a minha imensa insatisfação, na sessão que eu estava, havia apenas eu, minha namorada e o nosso amigo, que escreve aqui no Cine Set, César Nogueira. 3 pessoas?! Apenas 3 pessoas naquela sessão se interessaram em ver o filme brasileiro mais bem sucedido do ano passado.

Portanto, venho aqui para implorar pras pessoas que dizem gostar de cinema, que vocês assistam o filme, e que chamem todos os amigos, e para estes chamarem todos os amigos, pra que o trabalho tenha o público que mereça, pois, com isso, todos ganham.

Dessa forma, os cinemas daqui vão ver que há público pra esse tipo de filme, que há público interessado em variados tipos de cinema, e que trazer filmes que fujam do estilo comercial pode sim, também, representar um bom negócio.

Somente dessa forma é que podemos demonstrar que queremos que haja alguma mudança na variedade de filmes que nos são oferecidos.

Bom, feita a intimação, agora vamos ao filme em si.

É bastante complicado dar algum tipo de sinopse a este trabalho, pois digamos que ele não se preocupa em desenvolver uma trama que tenha início, meio e fim, e que termina de maneira diferente da que como começou. “O Som ao Redor” tem como objetivo traçar um olhar sobre a classe média, mais especificamente sobre a classe média de um ponto de Recife.

E como já disse Tolstói, se queres ser universal, comece pela sua aldeia, e Kleber Mendonça Filho fez isso de maneira brilhante.

Basicamente, o filme conta a história de um grupo de pessoas que mora na zona sul de Recife, e recebe a proposta de receber segurança particular na rua. Depois da chegada dos seguranças, observamos de que forma essas pessoas interagem umas com as outras, e de que forma os seus hábitos e costumes interferem na vida das outras pessoas.

Se se pode dizer que há um subtema principal na história, este é certamente a questão relacionada à segurança.

A banda O Rappa tem uma famosa música chamada “A Minha Alma”. Nela, o grupo carioca discorre sobre este mesmo assunto, fazendo uma série de questionamentos sobre qual é a paz que as pessoas querem, e qual a que elas obtêm. Numa parte da letra, a música diz: “As grades do condomínio são pra trazer proteção. Mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão”. Em “O Som ao Redor”, este pensamento está bastante claro.

Em busca da tão sonhada paz, da sensação de segurança, as pessoas se prendem. Fazem isso de maneira consciente, e querem sempre se prender cada vez mais, por assim acharem que estão seguras. Perceba como em todos os planos internos do filme há grades em algum lugar. Grades colocadas por essas mesmas pessoas. E Mendonça é hábil a constantemente filmar os seus personagens de fora, ou seja, os vemos sempre atrás das grades, aprisionados a essa vida repleta de inseguranças e incertezas, onde remediar parece sempre a decisão mais sensata a se fazer.

Câmeras de segurança, alarmes, seguranças particulares, cães de guarda, guardas-noturnos, guarda-costas, todas as soluções encontradas por essas pessoas parecem insuficientes, incapazes de trazer a tão sonhada paz, levando apenas à sempre constante sensação de estresse, companheiro fiel desse way of life.

Não é a toa que quando Clodoaldo (Irandhir Santos), oferece o serviço de segurança particular, todos parecem simpáticos à ideia, e o guarda utiliza-se disso para vender o seu trabalho, apresentando uma lábia profissional, de um homem que conhece e sabe tirar proveito da insegurança das pessoas.

Mendonça também nos apresenta, logo nos planos iniciais, fotografias antigas sobre o mundo rural, com imagens de trabalhadores, patrões, lavouras e cenários que teoricamente ficaram nesta época, como casa grande e senzala. Mas logo na sequência ele nos apresenta a um condomínio de classe média, que fica literalmente ao lado de uma favela, como se nos perguntasse, será que a situação mudou tanto quanto você acha que mudou?

Isso fica ainda mais reforçado com a presença do austero Francisco (W.J. Solha), que é mostrado como um homem poderoso, mas que exerce um poder semelhante ao que possui como senhor de engenho. Por ser dono de muitos terrenos na área, ele claramente exerce um papel de coronel do local, contando com a admiração e subserviência de todos, fazendo com que as comparações entre os dois mundos tornem-se cada vez mais evidentes.

Só que com a diferença de que hoje as coisas são colocadas em uma embalagem que promete uma sofisticação que apenas complica as coisas, criando uma série de vícios e reações nas pessoas, que acarretam os sentimentos que abordei anteriormente, mas que também perpassam por inutilidades, como a necessidade de falar e observar a vida dos outros, como quando os guardas conversam sobre detalhes das vidas moradores, ou quando o segurança vai observar o casal no elevador pelo monitor das câmeras de segurança; na patética reunião de condomínio, onde é nítido que a individualidade de cada um é sempre colocada à frente do desejo comum, em que o mais importante é garantir que a sua Veja não venha fora do plástico; quando se decide fazer acupuntura, mesmo que após a sessão você não seja capaz de tratar com educação as pessoas ao redor; ou quando se chega ao extremo de brigar fisicamente por, dentre vários motivos fúteis, a televisão do vizinho ter oito polegadas a mais do que a sua.

Estes sentimentos estão brilhantemente ilustrados em Bia (Maeve Jinkings), que parece sempre prestes a ter um ataque de nervos, sempre demonstrando uma impaciência e uma infelicidade que só são sanadas de maneiras, digamos, não convencionais, com o uso de entorpecentes, ou quando se utiliza de maneiras variadas para se masturbar, e com isso finalmente conseguir um alívio, nesta que é uma das melhores cenas do filme, em que o som é utilizado de maneira muito inteligente.

Aliás, o som do filme, fazendo jus ao seu título, é simplesmente primoroso. Funcionando de uma maneira em que ele contribui não só para a compreensão da trama, mas também na linguagem do filme, tem-se a impressão de que o longa é guiado pelos sons, que estão ou não dentro do plano. Se ele possui papel bastante claro na já citada cena da máquina de lavar, e quando Bia vai tentar relaxar ouvindo Queen, ele também possui papel fundamental para tirarmos nossas conclusões acerca do que se trata o filme quando o som está fora da tela, com os intermináveis latidos do cachorro da vizinha; no som de serras colocando grades em volta das portas e janelas, som recorrente em todo o filme; e quando o axé toca alto na rua, com isso invadindo as casas, em que fica claro que não importa quantas grades você coloque na sua casa, o som não possui barreiras, e vai chegar até você.

Ao mesmo tempo, o uso do som no filme apresenta a ideia oposta a essa, quando mostra meninos da favela jogando bola na frente do condomínio de classe média, e a mulher dentro do carro passa por cima da bola, causando um grande barulho do lado de fora, que ela não ouve de dentro do automóvel, mostrando que em determinados momentos e situações, as pessoas dessa classe, se fazem de surdas na tentativa de ignorar a existência desse tipo de civilização que não é a sua.

E se “O Som ao Redor” consegue passar por tudo isso, ainda é capaz de apresentar um final surpreendente, consolidando de vez este trabalho como um dos melhores filmes brasileiros dessa nova década.

Pôster de O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho