No final do ano passado, a New York Film Academy apresentou um interessante infográfico sumarizando uma série de dados sobre desigualdade no que diz respeito à presença feminina no mundo do cinema. Ela é expressa das mais diferentes maneiras: na caracterização predominantemente sexual dos papeis femininos; nos salários mais baixos se comparados a homens na mesma função; no baixo número de Oscars recebidos por mulheres (excetuando as categorias de Melhor Atriz e Atriz Coadjuvante, claro); e na baixa quantidade de roteiristas, produtoras, editoras e diretoras mulheres. A discrepância é ainda mais chocante quando relembramos que as mulheres tiveram um papel fundamental no início da história do cinema, desempenhando em pé de igualdade das funções mais técnicas como edição até as mais criativas como roteiro e direção.

Essas informações foram o ponto de partida para o surgimento dessa nova seção do Cine Set, “O segundo sexo no cinema”. Sem seguir uma ordem cronológica e mesclando obras com as mais variadas temáticas, dedicaremos um espaço cativo para abordar bons filmes de diretoras mulheres. Para início de conversa, selecionamos a controversa diretora Leni Riefenstahl e o documentário que lhe deu um lugar cativo (e amaldiçoado) na história do cinema: “O triunfo da vontade” (1935).

Nos anos 1930, Leni Riefenstahl era uma bela atriz que fazia sucesso em um subgênero específico do cinema europeu na época, o “cinema de montanha”, no qual esta formação geográfica possui uma importância decisiva para a trama. Não por acaso, sua primeira aventura na direção foi com “Das blaue Licht” (1932), que seguia o estilo que a consagrou.

No ano seguinte, Leni começa o envolvimento com a propaganda nazista, a partir da direção do documentário “Der Sieg des Glaubens” (1933). Este filme já predizia o formato utilizado para “O triunfo da vontade”, mas acreditou-se por muito tempo que todas as suas cópias haviam sido destruídas, até uma versão ser encontrada no Reino Unido nos anos 1990.

Surge então, em 1935, “O triunfo da vontade”. Patrocinada pelo partido nazista e com certa liberdade criativa, Leni registrou um congresso do partido nazista em Nuremberg em 1934, o qual contou com a participação de 700 mil pessoas. O filme materializa no plano audiovisual os ideais da estética nazista a partir da comoção da massa, da arquitetura e da (aparente) organização, captada com grandiosidade a partir de ângulos de câmera inusitados para a época, como o uso de lentes de longo alcance e imagens aéreas.

Se as páginas da história trataram de registrar o curioso fato de que Adolf Hitler fora um artista frustrado, pelo menos se pode dar a ele o crédito de ter acreditado e investido no talento de Leni. O ditador parecia entender o poder do cinema como propaganda e deu à diretora carta branca até para ordenar a construção de estruturas como pontes, trilhos e um sistema de iluminação adequado nos locais de filmagem em Nuremberg para que a captação das imagens seguisse a maneira que Riefenstahl planejou.

E que planejamento! Excetuando-se o caráter reprovável da ovação ao nazismo, “O Triunfo da vontade” é um documentário que explicita a beleza da ordem e o poder inebriante, pura e simplesmente, sem nenhum caráter crítico. É um filme que apela aos sentidos e apenas a eles, e que mantém grande dinamismo desse apelo a partir das escolhas de sua diretora, que comprou a ideia com maestria (pelo menos para o filme, pois sempre pairou a dúvida se o envolvimento de Leni com o nazismo era apenas profissional). Não por acaso, o filme foi tão bem avaliado pelo partido nazista que sua exibição se tornou obrigatória nas escolas alemãs ainda em 1935, até ser banido ao final da Segunda Guerra Mundial.

A grande beleza estética contrasta com a estruturação extremamente simples no plano do roteiro em “O triunfo da vontade”. Com poucos intertítulos explicativos, o filme segue, dia após dia de evento, os passos do líder “perfeito” (enquadrado numa eterna contre-plongée e com ares de semideus) e seus comparsas, além do amor incondicional do povo por Hitler desde sua chegada em Nuremberg, numa representação exagerada e apoteótica, embora não necessariamente falsa.

O uso da música também é emblemático nesse sentido, pois ela permeia o filme quase que em sua totalidade, excetuando os momentos de discurso e outros como quando vários soldados dizem de onde vieram. Apesar de repetitiva, a trilha sonora instrumental dá ritmo aos passos dos soldados, embala a paixão da massa por Hitler e, especialmente ao final do filme, contribui para a representação de um senso não apenas de unidade política, mas de uma união do povo que sofrera tantas derrotas até então e que se reerguia (apenas aparentemente) das cinzas a partir do nazismo.

Esse senso de união também é expresso visual e simbolicamente repetidas vezes, quase que martelado na cabeça do espectador. Como parte da propaganda nazista, não basta consolidar o líder como benfeitor, mas expor como o sentimento de satisfação do povo é “óbvio”. Nesse sentido, os rapazes da juventude nazista são retratados como saudáveis, viris, mas também descontraídos e alegres; os soldados que berram suas cidades e vilas de origem são imersos numa edição que aproxima seus rostos em close-up da face de Hitler e da bandeira enquanto se ouve “Um povo, um Führer, um Reich, uma Alemanha”; e as grandes panorâmicas que mostram apenas uma multidão de pessoas ouvindo os discursos de Hitler lhes tiram a identidade, mas transformam as pessoas numa só coisa.

A apoteose de “O Triunfo da Vontade” lançou a já famosa Leni Riefenstahl ao olimpo do cinema na Alemanha nazista dos anos 1930. O documentário garantiu alguns prêmios e uma farta bilheteria na Alemanha, além de ter sido catapultado a item básico nas escolas do país. Porém, ao final da Segunda Guerra, Riefenstahl foi renegada e levada ao ostracismo justamente por conta do filme. Até sua morte em 2003, a diretora reafirmou sua ignorância política em relação ao nazismo, aos campos de concentração e aos assassinatos em massa na época, além de defender o filme como um projeto puramente estético e de valor histórico. Para o bem ou para o mal, Leni Riefenstahl foi um dos diretores que lançou ao público questionamentos sobre o valor da “arte pela arte” perante suas consequências e sobre o poder do cinema perante o público.

Nota: 8,0