Todo filme brasileiro que não é uma comédia e se aventura no mercado cinematográfico nacional merece o reconhecimento e respeito de todos. Afinal, se o cinema brasileiro consegue hoje grandes números de bilheteria isso se deve majoritariamente às comédias, e todos os filmes que não seguem o gênero têm que correr dobrado para conseguir chamar a atenção do público, o que consequentemente quer dizer menos patrocinadores, menos dinheiro, menos filmes.

Mas o problema é quando essa proposta diferente, que aqui mescla elementos de drama com suspense, ainda se mostra muito presa a uma linguagem novelesca, principalmente no que se refere à representação dos atores, roteiro e direção, alcançando assim um resultado muito próximo de uma novela da Globo, e o que poderia haver de inovador vindo das possibilidades artísticas mais amplas que o cinema oferece em relação a televisão aberta, acaba virando um mais do mesmo, que soa inadequado, até meio desengonçado, como se não fosse pra ser apreciado em tela grande.

Infelizmente “O Vendedor de Passados”, dirigido por Lula Buarque de Hollanda, é um exemplo claro disso, um filme que se vale de uma premissa relativamente interessante, para no fundo contar uma história bastante convencional, tendo a artificialidade como personagem principal.

Baseado no livro do angolano José Eduardo Agualusa, o filme conta a história de Vicente (Lázaro Ramos), um homem cujo trabalho é criar novas biografias para pessoas insatisfeitas com o seu passado. Através de fotos e vídeos, Vicente inventa uma nova vida anterior para os interessados, que a partir dali podem recomeçar suas vidas a partir de um passado novo. Certo dia ele recebe a visita de uma mulher misteriosa (Alinne Moraes), que não quer passar nenhuma informação sobre o seu passado, e impõe apenas uma condição: que nesse passado ela tenha cometido um crime. Depois de realizar o serviço, ele se vê envolvido numa história mais ampla do que parecia, e constata que foi usado como parte de um plano grandioso.

Acompanhando sinopse e trailer o filme dá a entender que trará uma trama parecida com a de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004), escrito por Charlie Kaufman (que até recebe uma homenagem no filme, dando nome a “empresa” na qual Vicente trabalha). Mas “Vendedor” nem arranha a superfície da complexidade do longa de Gondry, e tem a artificialidade das suas situações e diálogos como marca registrada.

O roteiro de Isabel Muniz (autora da novela “Cheias de Charme”) até que tenta vender uma imagem de que é intrincado e complexo por causa das particularidades do trabalho do protagonista, mas depois que entendemos a lógica da profissão de Vicente, começamos a ver que, no fundo, o seu trabalho não é nada extraordinário. Muito pelo contrário, suas habilidades singulares praticamente estão restritas ao uso do Photoshop (que em alguns casos não é tão convincente, diga-se de passagem), pois as pessoas que estão a sua procura estão tão desesperadas que só precisam de uma história, um fiapo de passado para reconduzir o futuro. Ora, se se trata apenas disso, o trabalho exercido pelo rapaz poderia ser feito por qualquer pessoa de boa imaginação, e com conhecimento de programas de manipulação de fotos e vídeos.

Outro problema do roteiro de Muniz, e aqui acredito que este seja algo muito grave, é a construção extremamente frágil, muitas vezes piegas, dos diálogos, que de alguma maneira acabam contagiando o trabalho dos atores, e leva tudo ladeira abaixo, resultando em cenas que variam de artificiais e mal construídas, para outras que beiram o constrangimento, o riso involuntário, a vergonha alheia. Utilizando-se exageradamente de diálogos expositivos, os personagens sempre fazem questão de colocar em palavras os seus pensamentos, um artifício que, além de desnecessário, dá um tom bastante óbvio às cenas, sem contar pérolas como “Pois é, meu filho, o ser humano não tem limites”; “Tô é viva, e esperta!”; “O ineditismo não tira a sua cara de pau!” ou “O menino tava com uma vontade danada de viver”.

E aí fica difícil saber se os personagens são ruins pelos diálogos serem mal feitos, ou se os diálogos parecem ruins por conta dos personagens não terem complexidade. Honestamente, acho que é uma soma desastrosa das duas situações. É sempre possível enxergar os tipos que estão por trás daquelas figuras, e o roteiro parece nem se dar conta de que é fácil constatar isso. As ações tomadas pelos personagens estão envolvidas em clichês batidíssimos, muito parecidos com aqueles de Super Cine, em que as reviravoltas parecem apenas surpreender quem nunca acompanhou um suspense anteriormente.

E quando isso se junta com atuações extremamente problemáticas, está criado um cenário desolador. Apesar de talentosos, Ramos e Moraes parecem estar numa novela das sete, sempre exagerados, careteiros, querendo dar uma entonação dramática a todos os planos do filme. Acompanhar as caras e bocas que Ramos faz quando tira uma foto, monta um vídeo, ou simplesmente faz o almoço é algo que se torna quase insuportável, ele parece sempre intrigado, angustiado, querendo parecer como se estivesse sempre pensando em algo bombástico, sempre prestes a inventar uma fórmula mágica que resolvesse todos os seus problemas. Moraes vai direto pro clichê da mulher fatal, e depois pra bitch manipuladora, e sempre fica muito fácil notar as suas indicações, e a sua total falta de nuances. E isso vale para todo o resto do elenco, que claramente adota um estilo de representação bastante exagerado, decididos a não deixar nenhum tipo de dúvida na plateia sobre os sentimentos de seus personagens ali. É o estilo de representação da novela, é o pensamento de que o telespectador do folhetim assiste à televisão enquanto faz alguma outra atividade, e pra isso é preciso que os atores invistam num exagero de caras e bocas para não perder a audiência mais desatenta. Só que isso não serve pra tela grande.

As cenas são mal filmadas, exageram nos closes, tentando criar uma espécie de tensão que parece apenas forçada, nunca surge através do trabalho dos atores. Em outros momentos a câmera gira ao redor deles gerando um efeito bastante imediato, que não se sustenta, e em vez de denotar o uso de um conceito, parece apenas indicar uma escolha visual mais focada no efeito por si só, soando injustificada.

Tudo isso já é bastante problemático, mas em determinadas cenas tais falhas aparecem acumuladas, e o que era ruim se torna quase constrangedor. A cena em que Vicente conta para, a agora não mais anônima, Clara Ortega como foi a sua vida é um daqueles momentos de segurar o riso involuntário. É claro que entendo a intenção de Hollanda e dos atores na cena, de inserir forte dramaticidade a um ponto importante no filme, mas fazer isso da maneira teatral, exagerada, dá apenas um efeito contrário ao que foi pensado, deixa tudo piegas, artificial, risível; A forma como ele descobre que Clara escreveu um livro com a sua história, através de um programa de TV, é inacreditavelmente mal feita, ela começa a falar do livro, e 15 segundos depois já tinha que se despedir, pois o programa estava chegando ao fim, uma cena em que a falta de criatividade da roteirista e do diretor chegam a tal ponto, que fica parecendo má vontade, parece que estão fazendo o filme de qualquer jeito; A mãe de Vicente guarda o segredo da sua origem durante toda a vida do rapaz, uma dúvida que tirava o seu sono, algo que ela sempre se esquivava, e quando a vemos, ela conta tudo com a maior facilidade, sem nenhum problema. Ué, se contou desse jeito, com tanta facilidade, por que não contou tudo antes? Mais uma saída apressada e mal conduzida do roteiro; Em um determinado momento Vicente encontra uma série de cartas, uma troca de correspondências de um casal apaixonado dos anos 50. Que papel isso exerce no filme? Não leva a história a lugar nenhum, e ainda dá contornos ainda mais piegas à película; E o que são aqueles efeitos de péssimo gosto, já no final da história, de mistura de fogo, água, ar? Será que não existia uma maneira mais elegante de Hollanda ilustrar a agonia de seu personagem?

E se pararmos para pensar, a história principal também não é das mais criativas e bem amarradas. Era um plano, o tempo inteiro, voltado para Clara escrever um livro em cima da história de Vicente, certo? Mas como assim? Se ele estivesse inventado uma história medíocre, ainda teria valido a pena? E ele deu uma história preliminar para a moça, mas foi ela quem desenvolveu, criou novos fatos e lançou um livro (que se torna um best seller, bom lembrar), então como isso se explica? Ela era uma escritora que precisava de um ponto de partida para escrever um livro e estava sofrendo um bloqueio criativo? Se ela tinha capacidade de escrever um livro best seller, por que criou toda essa história por trás?

Como se não bastasse, o final do filme ainda reserva um momento muito desagradável, ao simular um final surpresa, em que fica clara a intenção de puxar o tapete do espectador, mas que novamente só cria embaraços devido a sua falta de habilidade. Assemelhando-se novamente a um grande filme, dessa vez “Desejo e Reparação” (2007), “Vendedor” de novo só se vale do óbvio e da primeira camada da ideia colocada no filme de Wright, e só consegue surgir como oportunista ao inserir o questionamento de que acreditamos em tudo o que vemos, ao som de “You Don’t Know Me”, de Caetano Veloso.

Afinal, o próprio filme surge como uma contradição dessa frase. Tudo o que ali acontece não parece fazer sentido, parece meio fora de lugar, fora de tom, exagerado, sendo mais provável não acreditar em nada do que acontece ali, pois falta organicidade para comprarmos aquilo. E como tal contradição não é proposta pelo filme, e sim surge como um efeito colateral dos seus defeitos e falta de rigor, “O Vendedor de Passados” vem pra ocupar um espaço bastante secundário no cinema brasileiro atual, que vive um bom momento exatamente por ter encontrado uma verdade própria, que se preocupa mais em ser honesto do que facilmente compreendido. O que certamente não é o caso aqui.