“Elle” (2015) e “Nathalie Granger” (1971) são dois filmes que contam com improváveis pontos de interseção. O primeiro, dirigido por Paul Verhoeven, e o segundo, por Marguerite Duras, tratam suas mulheres-centros de ação com uma dubiedade que perturba o espectador por sua inconclusibilidade. 

A inspiração para aproximar as duas obras veio de um debate informal sobre “Elle” no grupo do Coletivo Elviras, na qual algumas participantes abordaram suas percepções sobre o longa de Verhoeven, numa discussão que focou também em como a representação do estupro reverbera para as espectadoras, algo pouco tratado pelas críticas do longa escritas por homens. Tive então a vontade não de tratar sobre o tema do estupro, mas de algumas outras colocações que também senti falta nas críticas que li de “Elle”, o que me levou novamente à “Nathalie Granger”, sobre o qual já havia escrito no Cine Set.

 Nos dois filmes, chamou-me a atenção:

 1O fato de não termos acesso a uma perspectiva íntima dessas fêmeas perturbadoras

Elas não usam o óbvio recurso da voz off, não são narradoras de suas histórias. A infância de Michelle surge pontuada em breves momentos, dando a entender o violento crime cometido por seu pai, ao passo que deixa dúbia a participação e percepção dela sobre o acontecido; o pouco que sabemos do que ela pensa sobre o fato vem a nós coberto pelo cinismo da personagem. Já Nathalie é apresentada como uma criança-problema, cujos feitos nunca sabemos ao certo quais são, mas as pistas dadas ao longo do filme dão a entender que se relacionam a comportamentos violentos e/ou desconcertantes. 

Ambas são “fêmeas perturbadoras”, que não seguem à risca os papéis sociais para as quais seriam moldadas, o que à princípio não é mostrado nem como bom, nem como ruim. Em dado momento, uma personagem dispara: “Nathalie quer matar todo mundo!”; já Michelle lidera uma equipe majoritariamente masculina, pede mais sangue e gemidos ao game sexista que eles desenvolvem; logo ela, que “deveria” não apenas subordinar-se, mas também repudiar a atividade dos homens. 

Para além dessa subversão, é importante frisar que fica subentendido nas obras que elas não possuem essa natureza contestadora por terem senso crítico apurado, o que poderia alçá-las ao posto de modelos de empoderamento, mas sim que são pessoas com algum tipo de transtorno psicológico. No entanto, o distanciamento escolhido por Verhoeven e Duras faz com que os espectadores tenham esse entendimento apenas como uma das várias possibilidades de ler as personagens, posto que elas não nos dizem o que são com todas as letras. O íntimo delas apenas a elas pertence, mas de alguma forma, sabemos que está lá.

2. A reação externa a quem elas são 

Em “Nathalie Granger”, esse é um elemento que salta mais aos olhos, enquanto que em “Elle”, ele acaba apresentado de maneira mais discreta. No primeiro, grande parte da trama e do dilema sobre o que fazer com a pequena Nathalie é apresentado ao espectador do ponto de vista de duas adultas, interpretadas por Lucia Bosé e Jeanne Moreau. 

A reação delas determina diretamente a vida da criança naquele momento, tal como se esperaria dada a sua idade, embora não saibamos qual a natureza da relação entre as três. Por sua vez, gera-se uma tensão por não termos certeza de que se tratam de pessoas de uma mesma família, servindo então para questionar a todo momento até que ponto elas se importam com o que quer que aconteça com a menina. Essas “não-pessoas”, no entanto, são nossos únicos guias do espectador para como interpretar Nathalie. 

Por sua vez, em “Elle”, a expectativa do outro (ou antes, a quebra da mesma) norteia Michelle. Ela não se mostra fragilizada aos amigos quando relata ter sido estuprada, o que os choca e nos alinha com a visão desses “outros”. Nossa surpresa quando ela flerta com o vizinho casado é também a surpresa dele, assim como o meio que dilema que surge quando ele visivelmente pondera se cederá à situação, isso tudo antes de descobrirmos mais sobre quem aquele homem é. 

Curiosamente, é quando Michelle lida com o núcleo familiar mais próximo (ex-marido e filho) que nós conseguimos nos ver mais como ela: podemos perceber tanto a ternura quanto a vontade de controlar a vida de um filho claramente necessitado de orientação, assim como o ciúme não do ex em si, mas da capacidade de encantamento que a nova namorada dele gera. Ela chega perto de ser humanizada, mas ainda assim tem-se a impressão de que os três seriam muito mais felizes longes uns dos outros. A maternidade e o laço familiar é, também, algo a ser repudiado nessa dinâmica de relações, aumentando a distância entre as personagens principais nesses dois filmes e nós, ao passo que nos aproxima dos personagens “normais”. 

O desfocamento de onde essas mulheres estão em termos morais (ou: elas são o mal?) 

Unindo-se ao primeiro ponto aqui colocado, a certeza de um lugar moral às personagens Michelle e Nathalie também é ausente ao final dos dois filmes. Não sabemos se elas são personagens simplesmente desenvolvidos para representar algum tipo de mal que se traveste de frágil (criança, mulher) para nos enganar. Não sabemos se elas são uma espécie de alegoria patriarcal para representar uma sociedade doente, na qual a mulher, ser construído para ser subserviente, amável, maternal e dócil não apenas “masculiniza-se”, como vai além e se dessensibiliza. 

Também não sabemos, por outro lado, se elas são uma reação à opressão, vítimas de um cotidiano que as delineia para desempenhar papéis que não lhes trazem conforto à alma; assim como também não sabemos se elas seriam, única e exclusivamente, loucas  – possibilidade essa que esbarra tanto em nossa noção de “loucura” como em nossa noção de ver mulheres fora do padrão automaticamente como “empoderadas”, sem analisar caso a caso com atenção. 

Das colocações apresentadas, a que mais me atrai, pessoalmente, é a crítica social que circunda o comportamento de Michelle e Nathalie. Esta última, aliás, também me faz pensar em uma aproximação possível entre “Nathalie Granger” e “A fita branca” (Das Weisse Band, 2009), outro filme que aborda as origens do mal no seio de uma sociedade na qual vê-se o desbotamento dos laços afetivos e familiares em nome de noções institucionalizadas de disciplina. Ao vermos os filmes em seu diálogo com os tempos de hoje, é tentador não pensar no quão sintomáticas as duas são.

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