Na lista de storylines disponíveis no edital Prodav 8 de 2015, um chamava a atenção: série que desmistifica questões de gênero e sexualidade na juventude. Soava interessante. Mas seriam 13 episódios de 26 minutos. Pesado, fica de plano b.

Estudamos outras ideias, menores. Telefilmes, documentários, ou séries de fôlego mais curto. Mas a que mais fazia mais sentido de fazer, quando todos os aspectos mais importantes eram colocados à mesa, era a tal série jovem de 13 episódios.

Criamos um projeto, junto com os roteiristas Leonardo de Sá, Lígia Souto e Marcus Mazieri, que contava a história de um coletivo de teatro que divide uma casa, e se metia a fazer um filme sobre a lenda do boto dentro de um contexto urbano e contemporâneo em Manaus. O ato de fazer o filme, e o relacionamento com uma moça recém-chegada na casa, modifica as suas rotinas e relações. Boto.

Acabou que passamos. Fudeu! Quer dizer, notícia maravilhosa, que mudou nossas vidas momentaneamente, oportunidade extraordinária, etc., mas, e aí? Só havíamos feito curtas até então. Que, no fundo, nunca haviam alcançado grande repercussão (o Aquela Estrada, dirigido pelo Rafael Ramos, ainda não tinha desembestado a entrar nos festivais mundo afora). Como que acontece esse salto de qualidade em tão pouco tempo?

Compartilhei essa “angústia” com meus colegas de função e sócios, Rafael Ramos e Victor Kaleb. Seria um trabalho feito por diversos profissionais, todos com a sua importância, e todos também precisariam evoluir para darmos conta desse desafio. Mas a responsabilidade maior era nossa. Se o Boto não funcionasse, era em cima da gente que as cobranças viriam, e com razão.

E indiretamente ligado a isso estava uma questão complexa, que durante algum período da pré-produção foi um tabu. A tal da direção tripla. Como realizadores e espectadores temos gostos bem diferentes. O que um gosta, o outro acha cafona. O inteligente para um normalmente soa como hipster para outro. E seriam três. Tava na cara que ia dar problema em algum momento.

Mas rapidamente esse pensamento se mostrou equivocado. Seria absolutamente impossível fazer o trabalho se não fosse dessa forma.

A quantidade de trabalho e tomada de decisões que está inserida no ato de dirigir uma série de 13 episódios estava além da dificuldade que imaginamos. E olha que sempre pensamos que seria difícil. Imagina se tudo isso caísse na mão de apenas uma pessoa?

Dezenas de profissionais estavam diariamente contando com a nossa criatividade, dependiam do que disséssemos para fazer os seus trabalhos. Claro, com os curtas também é mais ou menos assim que funciona. A diferença é que tudo estava numa proporção incomparavelmente maior. Com eles, podíamos fazer a loucura que quiséssemos, que o máximo que iria acontecer seria alguém falar que não gostou, que tínhamos mau gosto, falta de talento. Normal, tudo bem, estamos pra experimentar, faz parte errar. Só que agora não. Tem dinheiro real envolvido nisso, temos bons profissionais nos departamentos, que possuem currículo.

O nosso nome tava em jogo, tínhamos que aproveitar essa oportunidade, pois isso iria dizer muito sobre o que faríamos dali em diante. Se o Boto desse certo ficaria muito mais possível conseguir outros prêmios em editais maiores, projetos mais ambiciosos, capazes de ir mais longe. Mas se não acontecesse, poderíamos nos queimar, dar passos para trás, enfrentar desconfianças.

Olhando de agora, é quase torturante pensar nos erros que cometi nos primeiros dias de gravação. Não estava preparado. Por mais que tenha estudado, antecipado as situações, relido o roteiro muitas vezes. As respostas não vinham na hora certa, nem me sentia seguro para ir além, para romper estruturas padrão.

O Boto mostrou a quantidade de coisas que precisam dar certo para que uma cena, curtinha que seja, fique realmente boa. Se tudo correr de acordo com o que está no roteiro, e todos fizerem o seu trabalho de maneira ok, teremos uma cena também ok. Um episódio que é o somatório de cenas ok, é o que de pior pode acontecer pra qualquer trabalho. Vira uma coisa artificial, falsa, às vezes beira o constrangimento. É o que mais acontece por aí. Tudo no lugar certinho, e uma obra que nos causa tudo, menos uma boa impressão.

E não dá pra fazer uma cena realmente boa sem tensionar, radicalizar, incomodar a equipe. Não dá pra aceitar o que vem de cara, o que parece bom à primeira vista, mas que por algum motivo não convence. Essa “coisa” vai saltar aos olhos de todos no produto final, e aí você verá claramente tudo o que não funciona, que era pior do que parecia, e vai se torturar por não ter visto isso na hora e refeito enquanto havia tempo.

Muita coisa precisa dar certo. O ator precisa ir além do roteiro, alcançar aquela expressão específica de uma maneira que pareça intuitiva, o câmera precisa acertar o foco na hora certa, o operador do microfone precisa entender bem a marcação da cena, a arte precisa causar o efeito no momento pensado, você precisa saber dizer a coisa certa para cada uma das pessoas que estão trabalhando na cena, para que assim, se nenhum imprevisto acontecer (o que tinha de latido de cachorro e barulho de obra durante a gravação…), a cena cresça, e tenha aquele algo a mais que você não sabe ao certo explicar em palavras, mas sente.

Se tudo ocorrer da forma padrão, não vai dar certo! É meio desesperador constatar isso. Outro dia assisti a uma entrevista do Kléber Mendonça Filho em que ele falava exatamente isso, sobre como ele achava um milagre quando um filme que ele fazia conseguia o êxito almejado, pois tudo levava a crer que não aconteceria, pela quantidade grande e improvável de coisas que precisam “coincidir”.

Boto fez as minhas experiências anteriores parecerem pequenas, superficiais. É muito difícil não pensar que essa foi a minha verdadeira escola, que tudo o que veio antes se empalidece diante da quantidade de vezes que fui quebrado, e tive que dar um jeito de encontrar soluções para gravar 6 cenas de qualidade por diária, durante 12 horas num calor infernal. Só agora acho que aprendi como gira essa roda de fazer filmes.

Admito que assim que vi o primeiro corte do primeiro episódio, a sensação que me veio foi a de alívio. Não ficou ruim! Podemos conseguir algo de qualidade na montagem!

Esse processo todo fez com que eu valorizasse muito mais qualquer obra audiovisual que seja um êxito. É muito difícil conseguir isso.

Com o decorrer dos dias, fui ganhando confiança, e abandonei quase todas as ideias que achei que funcionariam enquanto ainda tava na pré. Às vezes era mais intuitivo, outras mais chato, exigia mais repetições, depois mais compreensivo, dando mais liberdade criativa aos atores. Mas todos os dias exigiam dedicação absoluta. O cansaço mental ao término de uma semana cheia de gravações é insano.

Fui adquirindo mais confiança, e uma certa arrogância também. Perdi muito da paixão pura nesse processo. Ficou muito mais claro que tudo é construído, que ser artista romântico neste processo mais atrapalha que ajuda. Às vezes vale mais a experiência adquirida e a rápida constatação daquilo que não funciona, do que uma ideia genial que não se é capaz de realizar por n motivos.

Nada me garantia que um dia teria essa estrutura novamente para fazer um filme. Então, que pelo menos eu aproveitasse isso, e não tivesse receio ou vergonha de propor ideias não ortodoxas, ou que exigissem um desconforto por parte da equipe. Muitas vezes o papel do diretor é exatamente esse. O de surpreender, de não permitir acomodação, de ser implicante, e não se contentar com o que é ok. No final, é o diretor quem vai responder pelos erros, então pelo menos que se tenha errado com convicção.

Fazer uma série me deixou com muito gás para outros projetos. É impossível conter a sensação de que fazer um longa agora parece “fácil”. Gravamos o equivalente a 4 longas, em duração, com dinheiro pra fazer 1.

Claro que ainda é um desafio gigantesco, e que ter feito o Boto não me garante como bam-bam-bam em nada. É perfeitamente possível que meu primeiro longa não seja bom. Como disse antes, muita coisa interfere. Mas depois de ter gravado 338 minutos, dar conta de um projeto de 90 me parece uma jornada perfeitamente possível de enfrentar.

No momento que escrevo esse texto, estamos finalizando a montagem do quinto episódio. Eles estão apenas montados, ainda falta passar por todo o processo de pós de imagem e som. Não posso falar muito a respeito do resultado. Acho que temos um trabalho diferente do que é oferecido por aí, com questões atuais e desafiadoras, e ver tudo isso ambientado em Manaus me traz segurança de que a série tem uma longa trajetória a percorrer.

Também me vem um grande desejo de compartilhar todos os ensinamentos que Boto me trouxe. Vejo na cidade jovens realizadores que demonstram boa capacidade, vontade de estudar, de produzir material com rigor, longe de deslumbramentos. Certamente iremos pensar em maneiras de dividir com mais pessoas esse aprendizado.

Terminamos a montagem em novembro. Boto será veiculado nas TVs públicas de todo o país em 2018, e depois será negociado para ser exibido em outros meios, que podem ser de emissoras de TV fechada a plataformas online.

O futuro nos parece promissor. Tomara que todos os ensinamentos que essa série nos trouxe possam ser aplicados ainda neste processo, e que ela abra caminhos para que sigamos tendo a necessidade de evoluir para não sermos ludibriados pelas artimanhas dessa coisa viva que é produzir audiovisual.

Fotos: Keila Serruya