Jane Austen abre “Orgulho e Preconceito” com a icônica colocação de uma verdade universal, a qual ela vai contestando conforme o destrinchar do envolvimento entre Elizabeth Bennet e Senhor Darcy. Aproveitando esse ritmo, sabe o que mais poderia ser colocado como verdade universal? O fiasco que os filmes Originais Netflix tem sido nos últimos tempos. Entretanto, indo na contramão dessa afirmação, o serviço de streaming parece finalmente ter encontrado a direção para produzir ao menos originais que consigam aceitação do público.

Em um ano com produções como “O Pacote”, “Próxima Parada: Apocalipse”, “Mudo” e “Perda Total”, o que vem conquistado crescentemente seu público são as comédias românticas. Mesmo que ainda falte um caminho a percorrer em termos de qualidade narrativa, entre todos os filmes da casa, esse nicho tem conseguido afastar as críticas negativas e agradar boa parte dos espectadores que estão em busca de filmes leves, coesos e carismáticos. São essas três características que indicam as impressões que ficam com “Para Todos os Garotos Que Já Amei”.

Inspirando no livro de Jenny Han, a comédia romântica coming of age de Susan Johnson traz Lara Jean Covey (Lana Condor), uma adolescente que escreve cartas para expurgar a intensidade dos crushes que tem na vida e as guarda secretamente, até o dia que elas são enviadas misteriosamente e ela precisa lidar com isso.  Utilizando as fórmulas já clássicas dos romances high school, o filme é assertivo em suas qualidades técnicas e, mesmo que perca sua força conforme seu desenvolvimento, o resultado em tela é agradável.

Lara Jean se encontra em uma jornada de auto descoberta, e, nesse processo o turbilhão romântico o qual a divulgação das cartas a expõe, permite-lhe experimentar o relacionamento fantasioso, residindo um diálogo com o imaginário apaixonado do público adolescente. Tendo em vista que o filme brinca com as fantasias púberes e possibilita essa conversa entre o real e o ficcional, provocando-o a conceder por alguns instantes a realização de sua imaginação. Entretanto, essa confabulação é quebrada com a generalidade do roteiro de Jenny Han e Sofia Alvarez.

Han e Alvarez constroem uma narrativa simples, com personagens carismáticos. O problema talvez resida no processo de adaptação do roteiro, que se pauta muito nas narrações em off descrevendo os sentimentos da protagonista, não oportunizando momentos de reflexão e análise importantes no desenvolvimento dos personagens. Que por sinal, aparenta ser uma falha constante no filme. Não há desenvolvimento dos personagens. Por mais carismáticos que Peter (Noah Centineo), Kitty (Anna Cathcart) e Lucas (Trezzo Mahoro) – por exemplo – possam ser, eles são lineares.  Não há mudanças, amadurecimento em nenhum outro personagem, que não seja Lara Jean. Por exemplo, Peter já parece gostar dela no primeiro frame que aparece, é tanto que é essa percepção que desencadeia o envio das cartas.

Essa ausência de desenvolvimento reforça uma quebra drástica no filme. Mesmo que se defenda a fuga aos estereótipos, acaba atestando o conforto das roteiristas e expondo um receio em ousar. Apesar de toda a dubiedade entre o real e o imaginário e as motivações do relacionamento de mentira, não há resoluções, não há confrontos. Tudo funciona dentro de uma bolha em que verdades não são expostas e, quando descobertas, são minimizadas. Talvez este seja o motivo de coadjuvantes que poderiam acrescentar ao desenrolar da narrativa sumam e apareçam quando é oportuno. O terceiro bloco é o que mais evidencia isso, trazendo soluções fracas, risíveis e empobrecendo a caminhada até ali.

Assim, fica difícil fugir as obviedades das comédias românticas adolescentes. Mais do que isso, algumas pontas soltas ficam no filme, que só são fechadas com a leitura do livro. Da mesma forma, há espaços no livro que esperaram o filme para serem preenchidos, mesmo que a obra literária seja composta por três volumes. Dessa forma, Han e Alvarez esquecem um pré-requisito de uma obra adaptada: a independência.

Entretanto, é importante ressaltar que, apesar da condução do roteiro ter esses espaços para questionamentos, a direção de Susan Johnson é criativa e consegue suprir essas carências e ofertar coerência a trama.

As escolhas das cores e o casamento simétrico, que elas realizam em cena, intensificam a agradável construção visual de Michael Fimognari. Alguns planos são inesperados e conseguem reforçar a ambientação, cuidando, especialmente, de detalhar os sentimentos dos personagens. Um esforço apreciável mesmo quando o roteiro tende a ser expositivo. Os planos em zenital para captar detalhes e os planos aberto para evidenciar a angustia dos personagens também é um trunfo criativo da produção. Soma-se a isso a montagem engenhosa que funciona no ritmo do pensamento adolescente e consegue manter a atenção a trama.

Nesta construção técnica da obra, o figurino é um diferencial e consegue transpor as características dos personagens e sua relação com a protagonista, mesmo aqueles que são regalados ao sumiço. Um exemplo disso é Josh (Israel Broussard). Quanto mais o relacionamento entre eles se deteriora, mais as cores vibrantes do início da trama vão dando lugar aos tons escuros ou apagados. Um contraste com Margot (Janel Parrish), que, na constância do desenvolvimento dos personagens, como irmã controladora usa cores sóbrias e elegantes.

Essa relação visual auxilia a traduzir os momentos de transição, crescimento e expressão. O figurino de Lara Jean é calculadamente descontraído, colorido, pop. Introduzindo sua personalidade confiante, independente e, simultaneamente, tímida. A figura da personagem emite toda sua segurança, mas seu planejamento de vestiário, também, indica as dificuldades que tem de expressar o que sente. Daí as cartas servirem como subterfúgio para revelar sentimentos que nunca encontrariam seus donos. Entretanto, o filme mostra que essa dificuldade de comunicação perpassa todos os personagens em fase de crescimento: seja Peter e o abandono do pai ou Josh e seus sentimentos pelas irmãs Covey ou Margot e sua relação com a família e Josh. Todos mantêm alguma temática que não conseguem discutir, tornando o plot principal da narrativa esse fator comunicacional.

No processo de identificação do público, uma causa que contribui bastante é a direção de atores e o carisma deles. Lana Condor segura a trama e consegue criar um diálogo receptivo com o espectador que aguarda suas expressões faciais e reações. Quanto aos coadjuvantes, mesmo com pouco tempo em tela, são interessantes, cativantes, atraentes e vitais para endossar o tom familiar que exorta a trama.

Apesar dos altos e baixos, “Para Todos os Garotos que Eu Já Amei” é leve, divertido e consegue se complementar, mesclando os pontos positivos com os negativos e entregando um resultado apreciável e fluido. Mostrando que ainda há fôlego para os Originais Netflix, se investido no nicho certo. Mas nisso, a trama se junta a “A Barraca do Beijo”, “Quando nos Conhecemos” e “O Plano Imperfeito” para demonstrar um pouco dos gostos de quem acompanha e curte comédias românticas.