Séries de TV sobrevivem ao tempo de formas curiosas. Algumas entram para a história pelas suas qualidades ou episódios e histórias marcantes; outras, por detalhes mais prosaicos, como o tema de abertura – será que veríamos periodicamente o Tom Cruise no cinema nas suas aventuras de espionagem se o tema musical de ‘Missão Impossível’ não fosse tão marcante, mais do que a própria série antiga da TV? No caso de ‘Perdidos no Espaço’, a série dos anos 1960 criada pelo produtor Irwin Allen que mostrava as aventuras de uma família, bem, perdida no espaço, as pessoas que se lembram dela se lembram dos planetas coloridos, do tom ingênuo, do tema de abertura composto por um tal de “Johnny” Williams, do vilão afetado Doutor Smith e do Robô, que agitava os braços e gritava “Perigo, Will Robinson!”, um dos mais famosos bordões da história da TV.

Nem todo mundo lembra que a série começou em preto-e-branco e com um tom menos de comédia e mais de aventura. Era até séria. Bem, nem todo mundo se lembra dela, ponto final. ‘Perdidos no Espaço’ é mais um conceito na cultura popular do que uma força real. Houve um filme, lançado em 1998 – o qual, confesso, nunca vi inteiro. E agora, porque o conceito sobreviveu, a série ganha o tratamento Netflix numa produção com todos os luxos e que nitidamente procura agradar à garotada de hoje. Uma garotada que, provavelmente, nem sabe que o velho ‘Perdidos no Espaço’ existiu.

Como toda produção televisiva de hoje, o novo ‘Perdidos no Espaço’ é bem mais complicado que aquelas produzidas nos anos 1960. No original, a família aventureira, os Robinsons, era a típica família americana de comercial de margarina. No atual, flashbacks nos mostram que os pais, John (Toby Stephens) e Maureen (Molly Parker), estavam em vias de se divorciar antes de viajar pelo espaço. As duas filhas, Judy (Taylor Russell) e Penny (Mina Sundwall), vivem metidas em pequenas picuinhas. Bem, pelo menos o pequeno Will (Maxwell Jenkins) continua inteligente. Ele faz amizade com o Robô quando a nave deles, a Júpiter 2, cai num planeta. O Robô não lembra em nada a figura abobalhada do original, parece mais uma criatura que se veria num blockbuster atual de Hollywood. Mas essa família, apesar de mais complicada que a antiga, é tão unida quanto. Há ainda outros flashbacks explicando o contexto da aventura – basicamente, um desastre na Terra levou a humanidade, bem, os que podiam, a deixar o planeta. Ah, e o Doutor Smith virou Doutora… A nova vilã é feita pela atriz Parker Posey, que convence no papel graças à sua cara de maluquinha de sempre.

Além de Posey, as crianças são umas gracinhas e Molly Parker continua uma atriz forte, como quem a viu em ‘Deadwood’ e ‘House of Cards’ bem pode atestar. E Ignacio Serricchio, como o piloto malandro Don West, provoca algumas risadas com seu jeito divertido. Pena que algumas opções narrativas questionáveis até impeçam os atores de brilhar mais. Os flashbacks dedicados a Smith acabam não explicando a contento algumas atitudes de verdadeira psicopatia da personagem – é como se os roteiristas quisessem tanto evitar qualquer referência ao vilão caricato da série antiga que foram com muita força na direção oposta. E usar duas vezes o clichê “vamos prender dois personagens num lugar e forçá-los a discutir a relação” num espaço de poucos episódios é uma grande falta de imaginação dos roteiristas.

Apesar de alguns problemas, percebe-se em ‘Perdidos no Espaço’ a clara decisão dos showrunners Matt Sazama e Burk Sharpless de fazer uma série voltada para o público infanto-juvenil, mas que os adultos também consigam apreciar. Essa decisão resultou num produto que realmente agrada, mas que também sacrifica sua profundidade em nome da aventura e do deslumbramento com a produção. Se você lembra-se do antigo Perdidos no Espaço, esqueça-se dos planetas toscos e cenários pintados; o da Netflix tem qualidade de cinema, os efeitos em computação são primorosos, os planos das paisagens do planeta são grandiosos e amplos, e os dois primeiros episódios são dirigidos por Neil Marshall, diretor de ‘Abismo do Medo’ (2005) e que também comandou episódios com grandes batalhas em ‘Game of Thrones’.

Os roteiros também investem na aventura: basicamente a cada episódio há uma encrenca para os personagens resolverem, algumas mais interessantes – uma corrida de veículos contra o tempo e erupções vulcânicas no terreno – e outras, nem tanto – umas enguias. Então, mesmo que os personagens sejam superficiais, o ritmo da aventura e a simpatia do elenco ajudam o espectador a ver tudo. E claro, o fato de o personagem mais interessante e pivô da série ser o Robô demonstra o espírito do projeto e, curiosamente, ajuda a deixar a série com um clima divertido. O Robô da série é, no fim das contas, bem legal: é ele quem faz as coisas incríveis, é quem conquista o espectador apesar do seu design causar um estranhamento inicial, é ele que passa por uma evolução ao longo dos episódios.

‘Perdidos no Espaço’ não tem maiores pretensões além de divertir e até consegue, apesar da superficialidade da coisa toda. Caso o espectador queira ver uma série sci-fi com força, conceitos interessantes e teor político, além de ação e suspense, a Netflix traz ‘The Expanse’, um seriado incrível que infelizmente ainda é pouco visto. Perdidos no Espaço não é ‘The Expanse’, mas nem precisa, o universo é grande o bastante para caber propostas narrativas diferentes. A versão antiga da série sobreviveu porque, na memória de muitos espectadores, era uma série legal de se assistir, virou sinônimo de diversão na frente da telinha. A nova, apesar de flertar com características da TV de hoje – leia-se, ser mais “séria e sombria” – vai, no fim das contas, pelo mesmo caminho da sua antecessora, e isso não é uma coisa necessariamente ruim. Ora, funcionou bem para a velha série.