Por que Rocky sobrevive?

Bem, para mim e muitos da minha geração, que crescemos com o boxeador Rocky Balboa e seu intérprete, Sylvester Stallone, há mais de uma resposta para essa pergunta.


RESPOSTA 1: A história de um ator – e de um personagem

É importante começar do início para compreender a essência da criação de Stallone. Ele nasceu no bairro barra-pesada de Hell’s Kitchen em Nova York e foi um delinquente na juventude. Um dia botou na cabeça que queria ser ator: algo meio improvável por causa da sua visível expressão caída, resultado de um nervo facial rompido durante o seu parto.  Ainda assim, não desistiu, mas o início da carreira não foi nada promissor. Pequenas pontas em filmes – ele pode ser visto como um assaltante na comédia Bananas (1971), de Woody Allen – e até uma participação numa produção pornô soft pareciam indicar que o sujeito forte, de boca caída e dicção meio engraçada não conseguiria se estabelecer no cinema.

Então, um dia, em 1975, ele viu na TV uma luta de boxe entre Muhammad Ali e Chuck Wepner, um boxeador modesto que desafiou o campeão do mundo. Todos esperavam que Ali nocauteasse Wepner facilmente. No entanto, Wepner aguentou todos os 15 rounds contra Ali, e só no último foi finalmente derrubado e perdeu por nocaute técnico.

Antes disso, porém, no nono round, aconteceu o impossível: Wepner derrubou Ali com um soco. Stallone viu algo que seria para sempre lembrado, ao menos pelos fãs do esporte.

Inspirado pela luta, Stallone escreveu freneticamente o roteiro de Rocky, Um Lutador (1976) e completou o texto em três dias. O estúdio United Artists gostou do roteiro e queria comprá-lo, visando-o transformar em veículo para um ator estabelecido da época: nomes como James Caan, Ryan O’Neal e Burt Reynolds estavam cotados para interpretar Rocky. Mas o roteirista bateu o pé e o tomou a decisão que fez sua carreira: ele só venderia o roteiro se pudesse também estrelar o filme. A UA topou, mas produziu o filme a toque de caixa, com um orçamento bastante reduzido. O resultado, no entanto, surpreendeu a todos: o longa, dirigido por John G. Avildsen e com Stallone como protagonista, virou um grande sucesso de bilheteria e candidato ao Oscar na cerimônia de 1977. O próprio Stallone foi indicado em duas categorias: ator e roteiro original. E mais incrivelmente ainda, Rocky acabou ganhando os prêmios de montagem, direção e filme, contra candidatos como Todos os Homens do Presidente, Taxi Driver e Rede de Intrigas.


RESPOSTA 2: O verdadeiro poder de uma história

1976 foi o ano do bicentenário dos Estados Unidos. O cinema americano da época era caracterizado pela desilusão, e dentre os concorrentes já mencionados, Taxi Driver era muito sombrio, Todos os Homens do Presidente era sobre um evento traumático da História recente, e Rede de Intrigas era cínico. Rocky, por outro lado, era otimista, bastante simples e direto, e esse otimismo, sem dúvida, o ajudou a levar o prêmio naquele ano especial. Sou o primeiro a reconhecer que estes três filmes são superiores a Rocky, tanto tecnicamente quanto do ponto de vista temático. Mas aquele Oscar está em boas mãos com Rocky, e desprezá-lo, como parte da comunidade cinéfila o faz, é perder de vista o diferencial entre ele e o resto dos filmes ditos “inspiradores” que Hollywood sempre produziu. E esse diferencial dá ao filme o seu valor e se deve à visão de Stallone.

E qual é o diferencial? Rocky é sobre o esforço, não sobre o resultado final. A maioria dos filmes inspiradores é sobre o final: o rei George VI de O Discurso do Rei (2010) superou a gagueira e liderou seu país na guerra; Stephen Hawking em A Teoria de Tudo (2014) venceu a doença e virou um dos maiores físicos do mundo. Geralmente, nos filmes inspiradores, os protagonistas escalam montanhas e o filme acaba quando eles chegam ao cume. Rocky não. Rocky é sobre a escalada. Não é sobre o objetivo final, é sobre “ir até o fim” (going the distance, como o personagem diz no original em inglês).

Vamos analisar o roteiro de Rocky. Ao prestarmos atenção, descobrimos que o protagonista não passa realmente por um arco: Rocky aprende a se tornar um lutador melhor e descobre uma força que não conhecia, mas ele não sofre realmente uma mudança. Ele continua o mesmo sujeito calmo e boa-praça ao fim da história. Aliás, o roteiro o caracteriza como um bom sujeito sem que a história precise forçar a barra para isso, e Stallone transmite essa boa natureza através da sua interpretação. O esforço dele, no entanto, provoca mudanças nos demais personagens: Adrian (Talia Shire) se desabrocha e vira mulher diante dos nossos olhos, enquanto Mickey (Burgess Meredith) aprende a engolir o preconceito e tristeza que Rocky lhe despertavam, a fim de treinar o lutador. Ao final do filme, todas aquelas vidas são impactadas (para melhor) pela trajetória de Rocky, e esse processo também acontece com o espectador.

Depois, quando o filme se aproxima da luta final, vemos aquela montagem ao som da inesquecível canção Gonna Fly Now… e então Stallone dá o seu golpe certeiro, demonstrando que apreendeu a verdadeira lição da luta Ali-Wepner. Hollywood pode fazer um milhão de filmes com lições de vida capazes de inspirar os espectadores, capazes de dizer “Você pode se inspirar na vida deste cara, e a sua vida vai mudar”. Mas Rocky é um dos poucos que afirma: “Você pode se esforçar ao máximo, mas só um cara é campeão do mundo. Ainda assim, é possível um outro tipo de vitória”. Só alguns, dentre toda a humanidade, entram para a história e realizam seus sonhos. Mas o esforço para entrar para a história e tornar os sonhos realidade, o esforço de “ir até o fim”, isso é universal e pode ser tão importante (ou até mais) do que o resultado final.

Stallone poderia ter inventado um final feliz de conto de fadas para a sua história, com Rocky vencendo. E o público adora ver histórias de “vencedores”. Mas ele prefere contar a história paradoxal de uma bonita derrota, na qual a vitória mais importante é interna e não externa, e se situa na vida daqueles pequenos personagens e não no título mundial de pesos-pesados. Essa é a beleza do filme. E esses sentimentos são reais e importantes, e como estamos falando de arte, não deveríamos ter vergonha dos sentimentos, quando eles provêm de uma fonte tão honesta e de verdades tão básicas quanto estas.


RESPOSTA 3: A franquia Rocky

Claro, esta seria a lição do Rocky original. Caso nunca mais tivéssemos reencontrado Rocky, Adrian, Paulie, Mickey e Apolo, este seria o encerramento ideal para a história. Mas aí aconteceu o inesperado: Rocky fez sucesso e Stallone decidiu retornar ao personagem e ao seu universo. Foi aí que as coisas começaram a se tornar meio “meta-linguísticas”, pois podemos interpretar a franquia como uma autobiografia de Stallone. As três primeiras sequências – Rocky 2: A Revanche (1979), Rocky 3: O Desafio Supremo (1982) e Rocky 4 (1985) – são filmes divertidos, mas sem a ressonância do original, e nos quais o boxeador fracassado do primeiro se torna um astro, igual ao seu intérprete. As coisas atingem seu ápice no quarto, que transforma Rocky num herói americano contra os russos – e vale lembrar que naquele mesmo ano, com o lançamento de Rambo 2: A Missão (1985), Stallone era o maior astro de cinema da época.

Mesmo assim, as continuações serviram para criar uma ligação entre o personagem e o público de cinema. Rever um personagem periodicamente e acompanharmos “como anda a sua vida” o humaniza e o traz para mais perto de nós, o torna mais querido dos fãs, e no caso de Rocky ainda há o componente de amadurecimento de um ator (e da sua persona) aos olhos do público.

Quando Stallone fez Rocky 5 (1990), no entanto, o pico da carreira já tinha passado. O filme tem as suas falhas, mas no quinto capítulo já vemos uma volta ao drama e à humanização do protagonista, longe do ufanismo do quarto. Sem Rocky 5, não haveria Rocky Balboa (2006), o sexto filme e a melhor de todas as sequências do original. Quando a franquia já parecia ter se encerrado melancolicamente, Stallone retorna o personagem ao básico, até mesmo no processo de bastidores – o estúdio não queria fazer o filme e, segundo o astro, fazer Rocky Balboa foi mais difícil que fazer o original. Vê-lo de volta ao ringue pela última vez e superando a perda da esposa e o relacionamento com o filho foi, de novo, muito emocionante e comprova que o personagem ainda funcionava e ainda possuía uma forte ligação com público.

É essa ligação que é retomada em Creed: Nascido para Lutar, feito por dois fãs da franquia, o diretor Ryan Coogler e o ator Michael B. Jordan, e ambos se inspiraram no legado de Rocky para construir esse novo capítulo. De novo, vemos a associação entre o ator e o personagem: Depois de tantos filmes de ação, de tantos altos e baixos, e de tantas vezes nas quais sua carreira foi dada como morta, Stallone volta ao começo e fecha um ciclo, recebendo elogios e prêmios por causa da sua criação de quase 40 anos atrás.


RESPOSTA FINAL: Então… Por que Rocky sobrevive?

Ao receber seu Globo de Ouro de Melhor Ator Coadjuvante pela sua atuação em Creed há alguns dias, Sylvester Stallone agradeceu ao seu grande amigo imaginário, Rocky Balboa.

Se olharmos a história do cinema, veremos casos de atores que ficaram fortemente associados a um personagem. Geralmente eles os interpretaram várias vezes e essa familiaridade fez com que o público passe a não ser mais tão capaz de dissociá-los. Isso levou a momentos de amor e ódio entre personagem e intérprete (às vezes, mais ódio). Foi o caso, por exemplo, entre Sean Connery e James Bond, entre Christopher Reeve e o Superman, entre Leonard Nimoy e Spock, entre Anthony Perkins e Norman Bates.

Entre Stallone e Rocky, não. Sempre houve amizade entre eles. E é por isso que Rocky sobrevive. Porque ele é gente boa. Porque ele foi nosso amigo cinematográfico por quase 40 anos. Porque nós o vimos treinar, perder, ganhar e perder de novo, e ganhar de novo. E, principalmente, porque ele foi até o fim, e por um momento, nós fomos com ele. Por todos esses motivos, eu mal posso esperar para vê-lo de novo em Creed. Vai ser como reencontrar um amigo.