Iniciando como um drama social e transformando-se num verdadeiro suspense em seu terceiro ato, Praça Paris, o novo filme da experiente cineasta Lúcia Murat, fala sobre como o contexto violento de uma grande cidade como o Rio de Janeiro, além de todos os problemas recorrentes como racismo, desigualdade social, influenciam de formas diferentes o cotidiano de pessoas de diferentes classes econômicas.

O filme tem como enredo o cotidiano da psicanalista portuguesa Camila (Joana de Verona), que trabalha na UERJ e atende a uma ascensorista da universidade, Glória (Grace Passô). Glória é uma mulher que possui um passado trágico com um pai violento e alcoólatra, e que desde sempre teve uma vida complicada ao lado do irmão mais novo. Ela viu o irmão crescer, se tornar o dono do morro, e ser preso. Glória ainda mantém contato constante com o irmão, e mesmo não tendo envolvimento com os crimes cometidos por ele, está sempre envolvida numa teia de relações complexas com a polícia e os diversos personagens do morro. Conforme vai conhecendo mais a realidade da paciente, Camila vai sendo cada vez mais afetada pela sua história, até o momento em que passa a temer pela sua própria segurança.

Talvez o maior equívoco do filme seja colocar Camila como a protagonista da história. O seu conflito parece diminuído quando comparado ao de Glória. Mesmo indicando que as reminiscências de um conflito familiar mal resolvido – a morte da avó, também no Brasil – funcionam como um catalisador da crescente insegurança pela qual passa, Camila ainda possui uma série de privilégios. O que não torna a sua situação desimportante, claro, mas ainda assim é inegavelmente menos urgente que a da sua paciente que vive em um contexto de habitual violência, racismo e outros desrespeitos.

Ao mesmo tempo, o filme entende o lugar que está e se mantém consciente do seu discurso. Em tempos de tantos tensionamentos acerca do lugar de fala dos realizadores artísticos, Lúcia Murat parece compreender esta questão, e talvez por isso tenha dado tanta importância ao conflito de Camila. Afinal, a diretora certamente possui mais semelhanças com a psicanalista intelectual de classe média do que com a ascensorista negra moradora de uma favela.

O filme também é hábil ao, aqui e ali, fazer uma crítica a própria protagonista, denunciando as suas fragilidades, entendendo que de fato trata-se de um olhar de classe média sofrendo com o sofrimento alheio. Ou seja, entende-se que a angústia da portuguesa ocasionalmente resvala num white people problem.

Mas o filme tem um trunfo especial: Grace Passô. Fácil uma das melhores atuações femininas do ano, a experiente atriz, diretora e dramaturga de teatro traz ricas sutilezas à Glória, fazendo com que a personagem seja o termômetro do filme. A princípio amigável, aos poucos vamos entendendo quais são os demônios que a atormentam, e que fazem com que ela mantenha ainda uma relação próxima com o irmão, e de que maneira isso faz com que ela se torne uma pessoa ambígua, e claramente com coisas a esconder. Com economia e uma fala baixa, fugindo de qualquer histrionismo, Glória torna-se realmente ameaçadora no decorrer do conflito, muitas vezes apenas com o olhar e o timbre da voz, como na excelente sequência no elevador com Camila. O cinema brasileiro ganhou uma nova grande atriz.

Aumentando o tom de paranoia de Camila com o passar da história, com enquadramentos mais fechados, menor profundidade de campo, e enquadramentos claustrofóbicos, o filme planta os dois pés num suspense atmosférico no seu terço final, modificando drasticamente o rumo da sua narrativa. Muito por conta de Passô, acaba funcionando.

Apesar das incongruências citadas, pelo ponto de vista maduro e feminino de Lucia Murat, e pelo excelente trabalho de Grace Passô, Praça Paris apresenta-se como um dos bons filmes brasileiros de 2017.