A cada vez que Woody Allen lança um novo filme, alguém se encarrega de reacender um episódio controverso de sua biografia: o fato de que ele já foi acusado de abuso sexual de menores. Com a estreia de “Café Society” no Festival de Cannes, na França, o tópico voltou à tona mais de uma vez.

Com um timing casado com a exibição de “Café Society”, o filho de Allen, Ronan Farrow, escreveu um artigo para o The Hollywood Reporter. O assunto? O silêncio da grande mídia em torno das acusações de abuso sexual feitas pela filha de Woody, Dylan, quando ela tinha apenas sete anos. Ela relatou o caso num artigo publicado no The New York Times, também próximo da época em que o nome do pai esteve em evidência por conta de uma homenagem no Globo de Ouro 2014.

Agora em Cannes, o mestre de cerimônias do evento, Laurent Lafitte, fez uma (no mínimo) infeliz piada citando tais acusações, sem saber que o filho do diretor traria luz ao assunto novamente e de maneira muito séria. Novamente em Cannes, a atriz Susan Sarandon afirmou que “não tem nada de bom para falar sobre Woody Allen”,  e que acredita que ela tenha abusado sexualmente da filha.


No tapete vermelho, a aparente calmaria.

O assunto continua repercutindo, o que leva cinéfilos ao redor do globo a se fazerem a mesmas perguntas mais uma vez: qual o nosso papel nessa história toda? Está ok admirar Woody Allen, apesar dessa mancha obscura pairando sobre sua imagem? Deveríamos boicotar seus trabalhos? Ou podemos admirar seus filmes sem entrar em méritos pessoais do diretor enquanto pessoa?

Começando do começo…

Trata-se de um assunto deveras complicado, pois a acusação contra Allen envolve pessoas diretamente ligadas a ele. Do ponto de vista legal, há lacunas que não permitem que possamos, com 100% de certeza, apontar culpados e inocentes em cada uma das acusações. Não ajuda também o fato de que os principais detratores de Allen são sua ex-mulher, a atriz Mia Farrow, e dois de seus filhos, Dylan e Ronan, o que pode facilmente ser confundido como uma batalha por dinheiro e atenção às custas de Woody. Hollywood, no geral, cala-se sobre o assunto.

Para entendermos melhor como essa narrativa vem se desenrolando, precisamos olhar para o seu começo, mais especificamente, em 1992. O casamento de Woody Allen e Mia Farrow, estrela de vários de seus filmes, ia de mal a pior nessa época e degringolou de vez quando a atriz descobriu que o diretor tinha fotos íntimas de Soon-Yi Previn, filha adotiva de Farrow e o ex-marido, André Previn. Na verdade, Woody e Soon-Yi mantinham um relacionamento secreto que foi descoberto na época em que ela tinha 19 anos, embora haja comentários que a relação tenha se iniciado quando Soon-Yi era menor de idade, o que abre margem legal para se considerar isso tudo não um affair picante, e sim um abuso.

Também de 1992 data uma acusação ainda mais pesada: a de que Allen teria abusado sexualmente de sua filha biológica, Dylan, quando ela tinha sete anos. Mia levou a filha a um pediatra, que confirmou o abuso, embora não fosse possível precisar o culpado. O depoimento da menina contra o pai, no entanto, se manteve consistente, o que pesa muito a favor de seu relato, uma vez que crianças costumam mudar histórias de forma significativa quando as inventam. Relatos de adultos que estiveram na casa de Farrow no dia também fortalecem o caso contra Allen, embora ninguém tenha presenciado o assédio em si.


Dylan, Woody, Mia e Ronan

Pesa contra o diretor também o fato de que ele esteve em terapia com um psicólogo por conta do que é descrito apenas como “comportamento inapropriado” para com Dylan. No início dos anos 1990, Mia até orientara suas babás pra que a menina não ficasse sozinha com o pai. Na longa batalha judicial de divórcio, a justiça determinou que Farrow não agia por vingança contra Allen por ela trazer à tona as acusações relativas à Dylan. Mas novamente, nada podia ser 100% comprovado quanto a um possível crime cometido pelo diretor, pois mesmo com todo esse histórico, foi desestimulada uma nova batalha legal pelo caso de Dylan “para não traumatizar a criança”, nas palavras do promotor Frank Maco. Até que ponto essa decisão foi influenciada pelo time de Relações Públicas a serviço de Allen na época, não saberemos tão cedo.

O que mudou de lá pra cá?

Quando paramos para contextualizar o caso de Allen, muita coisa mudou na maneira como a mídia trata o assunto. No início dos anos 1990, a imagem de pessoas públicas era muito mais controlada, uma vez que a web não era um meio de fácil alcance para trazer visões variadas de um mesmo assunto. O conturbado divórcio de Allen e Farrow ganhou amplo espaço de divulgação, mas era muito mais difícil de se descobrir, na época, as transgressões de ambas as partes. Allen, por exemplo, divulgou na época um documento que afirmava que Dylan fora examinada por uma equipe de assistentes sociais e psicólogos, que determinaram que a menina tinha dificuldade em discernir realidade e fantasia, mas ela nunca foi examinada de verdade e o documento não teve validade legal. Farrow, por sua vez, não procurou a polícia de imediato para denunciar o abuso da filha, indo apenas ao pediatra, que obrigatoriamente contatou as autoridades.

Mais emblemático ainda é o fato do assunto vir a tona justo agora. Passamos por uma nova onda de levantamento de bandeiras para a causa de grupos pouco valorizados dentro e fora da indústria cinematográfica, notadamente de mulheres, negros e minorias. As representações desses grupos perpassam, inevitavelmente, o apagamento dos mesmos num contexto em que são homens brancos como Allen que são postos à prova agora. Assim como Scorsese, Kubrick e outros gigantes do cinema têm hoje suas filmografias questionadas por conta do retrato de suas personagens femininas, Allen é questionado por suas condutas fora da tela, da mesma maneira que Roman Polanski, esse sim condenado por ter estuprado uma menina de 13 anos no final dos anos 1970, mas livre até hoje por ter fugido para a Europa (cumpriu prisão domiciliar na Suíça, o que nem de longe soa como o pior dos quadros).

A partir dessa atmosfera de maior conscientização, fica cada vez mais claro como a permissiva indústria do cinema norte-americano vai de encontro a um apagamento de relatos como o de Dylan Farrow. O caso Bill Cosby nos EUA foi uma prova contundente de que a grande mídia precisa estar atenta aos relatos de “supostos” sobreviventes de abuso sexual. Silenciadas por décadas, as vítimas e Cosby ganharam voz e levaram à justiça (e às páginas dos jornais) o crime cometido por um dos comediantes  mais populares e queridos da televisão gringa. Antes disso tudo acontecer, no entanto, essas dezenas de vítimas foram silenciadas ou ridicularizadas por décadas.

Fãs, cinéfilos, público

Nesse cenário, é complexo julgar Woody Allen. Ao contrário de Polanski, que foi condenado de fato, nunca houve uma investigação que tivesse sido levada a cabo no caso de Allen. Aos olhos da lei (que é o que racionalmente devemos levar em consideração), ele nunca figurou como um criminoso. Ao mesmo tempo, sabe-se que o assédio sexual e, em alguns casos, até o estupro é de difícil comprovação. Sabe-se também que dinheiro e influência podem ter um papel decisivo para amenizar e limpar a barra de famosos como o diretor nova-iorquino.

Aos fãs do cinema de Allen, o carinho pela filmografia dele pode muito bem não esbarrar com a figura do diretor em si. Afinal de contas, quantas grandes obras não foram produzidas por pessoas de caráter no mínimo duvidoso? O renomado ator e diretor Sean Penn não foi também o agressor de Madonna? O bizarro herói cult Danny Trejo já não foi preso por tráfico e assassinato? E o que dizer do hoje popular e riquíssimo Robert Downey Jr. e seu passado como um usuário de drogas quase irrecuperável? Cavar as vidas pessoais de artistas geralmente é um convite à decepção.

Aos cinéfilos, o julgamento pessoal é moralmente mais fácil: conhecer algo da filmografia de Allen é simplesmente obrigatório. Não importa quem ele seja e o que tenha feito, o fato é que sua importância na história do cinema é indiscutível. Ver “Annie Hall” (1977), “Interiores” (1978), “Manhattan” (1979), “A rosa púrpura do Cairo” (1985), “Hannah e suas irmãs” (1986), “Tiros na Broadway” (1994) ou “Meia noite em Paris” (2011), para citar apenas alguns filmes do diretor, é um rito essencial para saber algo de básico sobre cinema, narrativa, construção de personagens e noção e autoria.

Indo novamente na direção de atentar para aspectos da vida pessoal de outros realizadores, Allen pode talvez figurar ao lado da cineasta Leni Riefenstahl, conivente com a ideologia nazista na Segunda Guerra Mundial; ou do visionário diretor Howard Hughes, que atropelou e matou uma pessoa sem nunca sequer enfrentar acusações; ou ainda de John Huston, que matou uma mulher e, igualmente, nunca foi julgado. As obras desses e outros artistas são o foco da cinefilia, e não exatamente quem eles são como pessoas, de forma que o cinéfilo pode ter a impressão de passar a margem de dilemas morais ao admirar essas filmografias.


John Huston, Leni Riefenstahl e Howard Hughes realizaram grandes clássicos, mas foram seres humanos questionáveis.

Percebemos assim que não é tanto o público o responsável por fazer o julgamento de Woody Allen: é a justiça e a mídia. Por mais imperfeitos que sejam, são os mecanismos legais os responsáveis por dizer quem são criminosos que devem ser condenados, e não debates como o que esse texto faz. Não por acaso, as informações aqui relatadas sobre o caso de Woody Allen são apenas as comprovadamente divulgadas como oficiais, com boatos e teorias da conspiração devidamente ignorados. Afinal de contas, seja no caso do diretor ou qualquer outra pessoa, não podemos ser justiceiros por nós mesmos porque, bem, isso simplesmente é errado.

A mídia, no entanto, tem o dever moral de trazer esse debate à tona, ao invés de varrer o assunto para debaixo do tapete como muitas publicações americanas acabam fazendo ao obedecer aos desejos do time de RP ligado a Allen. Não se trata de pedir aos jornalistas que descubram a verdade onde a polícia pode ter falhado, mas de reforçar e dar atenção a um tópico que sim, insiste em reaparecer, e que merece atenção. Laurent Lafitte falou sobre isso em Cannes, tal como Susan Sarandon. E mais gente deveria estar falando também, pois é no mínimo desconcertante que ninguém (nem polícia, nem jornalistas) questionem algo sobre uma acusação tão grave contra uma pessoa viva e em plena atividade.

Lembremos nesse contexto que Dylan Farrow teve grande resistência até conseguir publicar sua carta aberta ao pai no site do THR. Lembremos que outros crimes comprovadamente cometidos por celebridades que sequer deixam para trás um corpo de obra relevante a cinéfilos em longo prazo são minimizados, perdoados e esquecidos com freqüência. Acusar Allen, o público em geral não pode (pelo menos não ainda), mas questionar a invisibilidade da pauta, isso podemos.