Mais do que qualquer outro país do mundo, os EUA amam aqueles casos de crimes misteriosos. Quantos e quantos filmes/séries já não vimos baseados de mortes sem solução? “American Crime History: O.J Vs The People”, “A Sangue Frio”, “Dália Negra”, “Alpha Dog”, “Foxcatcher”, “Monster – Desejo Assassino”, “Zodíaco”…


O Misterioso Crime

Demorou muito para a indústria do show business americano voltar os olhos para a tragédia ocorrida no dia 26 de dezembro de 1996 na cidade de Boulder, no Colorado. Nesta data, a ex-miss Virgínia, Patricia Ramsey, ao acordar logo cedo, encontrou um bilhete que pedia US$ 118 mil para que não matassem a filha dela e modelo mirim ganhadora de vários concursos de beleza na região, JonBenét. Próximo ao fim do dia, o pai, John Bennett Ramsey encontrou a garota morta no porão da casa. A menina morreu vítima de esganação e estava com as mãos amarradas.

Sem pistas do assassino e com um trabalho desastroso da polícia incapaz de preservar o local do crime, as especulações e teorias quanto à autoria do homicídio começaram a se acumular: teria a mãe matado com inveja do sucesso da própria filha? Ou o irmão com ciúme do carinho dos pais com menina a sufocou até a morte? Por que não o pai deu fim à vida de JonBenét para esconder um possível abuso sexual? Ou então algum desconhecido da família entrou na casa e assassinou a garota? Por fim, alguém conhecido da família executou o crime durante as festas natalinas?

Hipóteses sobram até a hoje sem a precisão de quem matou a bela menina de 6 anos. Passados 20 anos e com o mistério ainda presente, a mídia americana ressuscitou o caso. O sensacionalista “Dr. Phil” entrevistou o até então discreto irmão da menina e “Who Killed JonBenét?” abordou o assunto em um telefilme banal.


O Filme

Sempre atenta aos movimentos do mercado e disposta a criar as tendências do momento, a Netflix resolveu apostar no docudrama “Quem é JonBenét?”, dirigido por Kitty Green. O filme mostra uma seleção de elenco com os moradores de Boulder para um falso filme sobre a tragédia. Ao longo das entrevistas, os candidatos acabam revelando as opiniões deles sobre o crime, além de segredos da própria vida.

“Quem é JonBenét?” fica no fio da navalha entre uma busca pela empatia e o oportunismo da exploração da tragédia durante toda a projeção. O tratamento oferecido parece respeitoso: não vemos fotos, muito menos imagens da família nem gráficos com notícias sobre o crime, algo tão usual em documentários. A bela fotografia com os cenários frios amplifica essa tentativa de fuga do sensacionalismo.

A narrativa, porém, resvala, muitas vezes, na fofoca. Entendemos o caso a partir dos pontos de vistas dos atores participantes da seleção e das leituras do roteiro do filme fake. As opiniões emitidas nos contextualizam da história e das suposições quanto a autoria e execução do crime. Quando são perguntados sobre quem teria de fato cometido o crime, cada um dá as suas respostas. Mas, com qual intuito exatamente? Somente que falem e comecem a tecer teorias e teorias da conspiração? Um puro e simples retrato do mundo pós-verdade? Do jeito que ficou, o filme parece apenas explorar a situação sem um intuito mais rico de debate sobre a tragédia.

O docudrama parece nem mesmo se tocar que estar caracterizado com roupas semelhantes poderia fazer com que aquelas pessoas entendam melhor a família Ramsey. O melhor exemplo fica por conta de uma mulher que vai ao teste de maneira completamente diferente das demais: blusa azul e terno preto com colar e brincos semelhantes ao de Patricia. Segundo ela, essas escolhas foram feitas após um estudo minucioso sobre o modo de vestir e falar da personagem. Porém, de todas as candidatas, ela aparenta ser a que menos buscou compreender o lado psicológico sem se importar com a gravidade do crime. Infelizmente, a diretora e a equipe não trabalham esta situação e a descartam mais adiante.

Se tudo relacionado ao crime soa vazio, repetitivo e, por que não, explorativo, “Quem é JonBenét?” ganha pontos na parte final com alguns entrevistados revelando os próprios dramas. Uma mãe ao se emocionar em imaginar um dos três filhos mortos e a comovente história de um cara que se viu suspeito de um crime mesmo sendo inocente mostra-se necessária em tempos que a empatia e se colocar no lugar do outro estão em desuso. Pena isso não ser mais utilizado no filme e casando com uma análise social mais abrangente do que a tragédia reflete da sociedade americana e de cada um de nós, ficando tudo no campo da experiência individual.


Resumindo…

O plano final com uma série de Johns Bennetts e Patricias Ramseys em um cenário da casa escuro, cheio de sombras ilustra bem o projeto da Netflix: há uma clara busca pelo refinamento técnico e alcançar o bom gosto enquanto, por outro lado, vemos uma obra vazia sem a menor capacidade e interesse de propor ou analisar nada exceto expor as verdades carregadas por aqueles indivíduos.

Sem dúvida, “Quem é JonBenét?” é um belo exemplar da era pós-verdade e toda sua pobreza, a qual Kitty Green e equipe acabam corroborando.