Dentre os filmes que acabam sendo alçados na categoria de Cult, há aqueles super experimentais, de difícil acesso e público realmente restrito, ao passo que outros se tornam itens básicos e até populares, pelo menos entre os cinéfilos. Hoje, “Réquiem para um sonho”, de Darren Aronofsky, encaixa-se nessa última “subcategoria”, por assim dizer, mas quando foi lançado em 2000, o público se defrontou com um filme muito esquisito (e igualmente genial).

Vale lembrar que, na década passada, Aronosfsky não era um grande nome do cinema, diretor de filmes com cheiro de Oscar e de grande apelo entre público e crítica. Naquela época, ele era um realizador iniciante que chamou a atenção com a mistura de thriller e ficção científica “Pi” (1998), um filme em preto, branco e muita paranoia. Com “Réquiem para um sonho”, ele começa a consolidar sua maestria em retratar o desequilíbrio e a crueza da violência física e, principalmente, psicológica, o que lhe garantiu lugar cativo no coração de muitos fãs de cinema mesmo depois de seus filmes posteriores rumarem cada vez mais para o mainstream.

Na trama de “Réquiem para um sonho”, acompanhamos o casal Harry (Jared Leto) e Marion (Jennifer Connelly), além de Tyrone (Marlon Wayans) e a mãe de Harry, Sara (Ellen Burstyn). Todos eles mantêm uma relação com o universo das drogas: o trio jovem se envolve com o narcotráfico na tentativa de juntar dinheiro e começar o próprio negócio, sendo eles próprios usuários de drogas consumidos cada vez mais pelo vício; já Sara se envolve com drogas lícitas graças a um sonho inicialmente inofensivo: ficar magra para vestir seu antigo vestido vermelho numa aparição em seu programa de tevê favorito.

Aronofsky estrutura o filme a partir das estações do ano e explicita a decadência desses quatro personagens na medida em que se afundam mais no vício. O que inicia no verão, com o quarteto leve e sem grandes complicações, cada um com seus planos e sonhos para o futuro, termina no inverno, com a resolução o mais negativa possível para todos eles.

Pode-se dizer que “Réquiem para um sonho” é o filme que você mostraria para o seu filho para tentar convencê-lo a não usar drogas, o que pode soar um tanto moralista. Porém, é inegável que o desenrolar da narrativa possui contornos extremamente realistas, ao passo que ela parece se esgueirar do tom de simples lição de moral para mostrar como o ser humano perde o controle sobre sua própria identidade por conta de um vício, numa abordagem bem mais complexificada do tema.

Além do olhar diferenciado sobre o uso de drogas, “Réquiem para um sonho” tem outro grande trunfo no cuidadoso trabalho em nível visual. O figurino e a maquiagem são essenciais para explicitar o apogeu e queda dos personagens em suas deteriorações físicas, refletindo o interior destes. Cenário e fotografia são igualmente bem utilizados, priorizando os tons frios, a palidez e a claustrofobia como que num prenúncio da desgraceira que vai ser o desenrolar da trama, tudo apoiado pela edição vertiginosa e que aproveita da melhor maneira possível os recursos experimentais hoje tão ligados ao universo videoclíptico como aceleração de imagens, jump cuts e divisões de tela, em especial nos momentos de exposição do uso de drogas.

A atuação é outro item de enorme destaque em “Réquiem para um sonho”. Quem hoje se surpreende com a dedicação do ator-cantor Jared Leto no filme que lhe rendeu um Oscar em 2014, “Clube de Compras Dallas”, provavelmente não deve ter reparado como há tempos ele dá atenção a papeis desafiadores. Jennifer Connelly também chama atenção, pois a atriz tem talento nato para representar personagens que sofrem intensamente, e ela nunca erra o tom do drama e nem tem medo de se expor, como bem demonstra a chocante e já icônica cena do “ass to ass” em “Réquiem para um sonho”. No quesito agradável surpresa, Marlon Wayans ganha ao extinguir totalmente a figura de comediante de filmes besteirol como “As branquelas” (2004) e se mostrar competente enquanto ator dramático.

Falar de atuação em “Réquiem para um sonho” é também colocar Ellen Burstyn em outro patamar. A veterana, mais conhecida como a mãe da menina endemoniada em “O Exorcista” (1973) é pura entrega com a direção de Aronofsky e simplesmente presenteia o público com uma das melhores interpretações da história do cinema, e não é exagero! São tantas as camadas que ela delineia na doce e inofensiva Sara, que vai da esperança à loucura dentro de seu vestido vermelho e delirante, tudo calcado num realismo assustador.

Cult ou “não-cult”, mais ou menos popular: caracterizações como essas são apenas detalhe frente ao pequeno grande filme que é “Réquiem para um sonho”, que merece ser conhecido e revisitado por qualquer pessoa com interesse na sétima arte.

Nota: 9,0