Se 2016 foi o ano em que a relação de política e cinema foi algo que aqueceu as discussões de cinéfilos e não cinéfilos no Brasil, 2017 tem tudo para reacender tal fenômeno nos Estados Unidos. Janeiro mal começou e já tivemos uma primeira polêmica, com o discurso da atriz Meryl Streep no Globo de Ouro, considerado por muitos um ataque da indústria contra o posicionamento do presidente eleito Donald Trump acerca dos imigrantes no país.

Donald Trump assume oficialmente o cargo em 20 de janeiro e além de ter de viver à sobra do legado de Barack Obama, também deve enfrentar o favoritismo deste no cinema. Mesmo com Obama ainda no cargo, muitos foram os filmes que se debruçaram a ele, tais como “Barry” (idem, 2016) e “Southside with you” (idem, 2015), e com o tempo, a tendência a cristalizar uma imagem idealizada do primeiro presidente negro da história dos EUA só tende a render mais produções. Além disso, ele foi um presidente pop, bem quisto em premiações e programas de variedades como o de apresentadores populares do naipe de Ellen Degeneres ou Jimmy Kimmel e documentários.

Trump, porém, fica longe de ser inexperiente no uso, direto ou indireto, do cinema como plataforma de sua persona: filmes como “Esqueceram de mim 2 – perdido em Nova York” (Home Alone 2: Lost in New York, 1992), “Studio 54” (54, 1998), “Celebridades” (Celebrity, 1998) e “Zoolander” (idem, 2001) contam com uma ponta dele. Na televisão, o presidente eleito já era mais que conhecido por produzir e estrelar o reality show “The Aprentice” (idem, 2004-atual), além de outras diversas pontas em seriados populares como “Um maluco no pedaço” (The fresh prince of Bel-Air, 1990-1996), “Sex and the city” (idem, 1998-2004) ou “Sabrina: aprendiz de feiticeira” (Sabrina, the Teenage Witch, 1996–2003). Antes mesmo de se colocar como candidato forte na corrida presidencial, ele explorou de maneira única a aproximação com o cinema, tornando-se popular não só por ser um conhecido bilionário, mas por essas aparições nas telas grande e pequena.

Delicadas relações

Trump e Obama vêm utilizando essa inserção na indústria de entretenimento audiovisual de maneiras bem distintas, e parte disso tem relação direta com os partidos (e valores) aos quais eles estão ligados. O primeiro se elegeu pelo Partido Republicano, de base conservadora, cujas alas mais “fechadas” defendem a influência da religião em tópicos como aborto, legalização de drogas, casamento homoafetivo e estado mínimo; Já o segundo pertence ao Partido Democrata, que apóia pautas mais liberais, como igualdade social, defesa de atendimento médico universal, auxílio a minorias em situação de vulnerabilidade e preservação do meio-ambiente, ou seja, tópicos que tradicionalmente dialogam com os ideais da comunidade de trabalhadores do ramo do cinema e televisão.

Em suma, Hollywood e a indústria de entretenimento no geral têm muito em comum com o que Obama grosso modo representou aos EUA em seus oito anos de mandato, isso se ignorarmos pontos controversos como o posicionamento na chamada guerra contra o terrorismo e focarmos em sua figura cool, liberal e progressista.  Não por acaso, em um artigo sobre os anos do mandato de Obama no cinema, o site especializado Indie Wire relembra que em 2008, quando ele assumiu a presidência pela primeira vez, “Quem quer ser um milionário” (Slumdog Millionaire, 2008) era o filme do momento, mostrando um garoto indiano em busca da realização do sonho de mudar sua realidade precária.

Nos anos seguintes, filmes como “Guerra ao terror” (The hurt locker, 2008) reverberaram o governo do tradicional George W. Bush. Alguns anos depois, em 2013, “12 anos de escravidão” (12 years a slave, 2013) trouxe à tona a questão da representatividade racial para os Oscars, a premiação de cinema mais assistida no mundo, imergindo um assunto que ainda estamos discutindo em 2017, dentro e fora da perspectiva da indústria cinematográfica. Na rebarba disso tudo, a representatividade das mulheres em frente e  trás das câmeras também ganhou espaço nos anos Obama. De “Selma” (idem, 2014) a “Mad Max: Estrada da fúria” (Mad Max: Fury Road, 2015), pautas queridas aos Democratas estiveram na boca do povo. Na corrida do Oscar 2017, podemos relacionar tal perspectiva a possíveis candidatos como “Fences” (2016), “Hidden Figures” (2016), “Moonlight” (2016) e “A 13ª. emenda” (13th, 2016).

No entanto, nem todos os críticos viram com o mesmo vigor o tal “efeito Obama” no cinema. Em um artigo do IndieWire de 2013, Lilian Ruiz traz uma reflexão sobre como as narrativas dos negros na era Obama olharam mais para o passado que para o presente, tornando mais fácil o distanciamento entre o que é visto na tela e o racismo do cotidiano no século XXI. A crítica preferiu, no máximo, ver tais filmes como produções de um período de transição para uma verdadeira Renascença do cinema de minorias.

Para além do “efeito Obama”, o político cultivou com atenção essa relação Washington-Hollywood ao longo de seus anos na presidência. Como bem pontuou o The Guardian em 2015, ocasiões como o Jantar de Gala dos Correspondentes na Casa Branca foi, nos seus anos à frente do país, apinhado de celebridades. Destes, muitos foram seus apoiadores em campanhas ou programas de governo, tais como Katy Perry, Scarlett Johansson, Lady Gaga, Amy Poehler e George Clooney. Este último chegou a realizar um evento para arrecadar verba de campanha para Obama (o que, nos EUA, é legalizado) que atingiu o recorde de US$12 milhões em doações em um dia, graças à polpuda participação de figuras como J.J. Abrams e Robert Downey Jr.

O entendimento do poder de influência do cinema por Obama pode ser apontado como uma marca de seus anos como líder dos EUA. Em 2013, ele participou de um evento no campus da DreamWorks Animation e, em seu discurso, expressou como a indústria de entretenimento é uma “máquina” a serviço da diplomacia e da propagação dos valores americanos para o mundo inteiro, destacando a responsabilidade dessas representações. Dois anos depois, em 2015, a primeira-dama Michelle Obama também destacou o peso das construções de sentido do cinema e da televisão em um evento de roteiristas que ocorreu em Washington. Na ocasião, ela falou sobre o papel da TV para promover a tolerância e respeito aos membros da comunidade LGBT+.

Barack Obama em evento no campus da DreamWorks, com o diretor Tim Johnson e o ator Steve Martin

Ainda que não tão espontâneo quanto Trump, Obama também prestou atenção nas hashtags que surgiram na web quando o assunto era cinema. Ele comentou, por exemplo, a discussão do #OscarsSoWhite, questionando: “Será que está sendo feito o possível para que todos tenham a mesma chance?”. Quando o assunto do momento foi a reação do governo da Coréia do Norte à comédia “A entrevista” (The Interview, 2015) – aquela que mostrava a morte fictícia do líder norte-coreano, Kim Jong-il – Obama se posicionou contra a decisão da Sony de abortar o lançamento do filme após o ciberataque norte-coreano à Sony Pictures.

O artigo do The Guardian pontuou, em 2015, o desafio dos Republicanos para manter tal glamour nessa relação de apoio mútuo, com poucos atores de maior renome abertamente apoiadores do partido – Adam Sandler, Dwayne “The Rock” Johnson e Stephen Baldwin foram pontuados como possibilidades, e Nicole Kidman recentemente afirmou que os americanos deveriam apoiar seu presidente, não importando quem seja. Soma-se a isso o fato de que vários republicanos de alas menos conservadoras (e até mesmo algumas bem conservadoras) declinam apoiar Trump em seu mandato que se aproxima, enquanto que, do lado dos Democratas, várias estrelas continuaram defendendo que Bernie Sanders, e não Hillary Clinton, era o candidato que eles estavam prontos para apoiar.

Outro artigo, desta vez da BBC, pondera se não seria muito cedo para que tenhamos visto como o cinema ressignificará a figura de Obama. Seus feitos ainda não podem por em perspectiva histórica a ponto de medir seu impacto tal como o cinema tem feito por décadas com as figuras de Abraham Lincoln, J. F. Kennedy ou Richard Nixon. Mais cedo ainda é pensarmos como isso se dará com Trump, embora possamos observar seu gosto pelos processos de comunicação extremamente populares e atuais (os reality shows, o twitter e as pontas em comédias e seriados), algo com que Obama dialogou em menor medida, preferindo opções que, ainda que de grande alcance, raramente tiveram a penetração das que Trump vem escolhendo ao longo dos anos.

O que o futuro promete

Trabalhando no terreno das possibilidades, o futuro das rememórias de Trump no cinema promete ser implacável, se o ritmo desse início de mandato ser tornar a tônica do discurso da indústria. Pode-se pontuar isso usando a repercussão do discurso de Meryl Streep no Globo de Ouro, a qual foi aplaudida de pé por seus pares, o que não é nenhuma surpresa, pois diversas celebridades receberam com tristeza a vitória de Trump nas eleições.

Até mesmo a atriz Carrie Fisher divulgou várias vezes sua repulsa pelo então candidato, e sua morte no final do ano ajudou a recuperar algumas de suas declarações sobre o assunto quando ela se tornou o assunto do momento entre o Natal e o Ano Novo de 2016. Mantendo a polêmica “em família”, o ator Mark Hamill decidiu expressar descontentamento de maneira bem humorada: dublando os tweets de Trump com a voz do Coringa, personagem que dubla nas animações de Batman.

A lista de grandes celebridades que se posicionam contra o presidente eleito aumenta a cada dia. O Capitão América Chris Evans, a roteirista e produtora Shonda Rhimes e a oscarizada Jessica Chastain são apenas alguns dos nomes que já se manifestaram abertamente sobre isso. Chastain, aliás, já confirmou que participará da Women’s March (manifestação que tem como mote a defesa dos direitos das mulheres, do meio ambiente, da imprensa livre, segurança e outras pautas) no dia 21 de janeiro. Já Alec Baldwin, Michael Moore, Mark Ruffalo e Shailene Woodley marcarão presença em outra manifestação, o comício We Stand United. Em dezembro de 2016, Leonardo DiCaprio, que também é ativista pró-questões de meio-ambiente, encontrou-se com Trump para discutir o assunto, o que não parece ter dado muito certo, uma vez que o presidente eleito escolheu Scott Pruitt – advogado que não acredita existir aquecimento global – para encabeçar a Agência de Proteção do Meio-ambiente.

Por sua vez, Michael Moore discorreu sobre o que ele espera do governo Trump essa semana, em uma entrevista publicada na Variety.  Moore afirma que levou à sério o discurso de Trump desde que ele se tornou candidato à presidência. Segundo o documentarista, Republicanos derrubarão rapidamente leis aprovadas no governo anterior, o muro entre EUA e México será construído e os imigrantes muçulmanos serão banidos do país.

O embate ideológico de Trump contra boa parte dos artistas de cinema e televisão, no entanto, está longe de ser uma guerra na qual ele está fadado a perder. Vale lembrar que, ironicamente, foi Michael Moore a figura do meio que previu a vitória de Trump nas eleições, num reconhecimento dos valores que os conservadores norte-americanos (e, a bem da verdade, não só de lá) andam promovendo a passos largos nos últimos tempos. O documentário anti-Obama “2016: Obama’s America” (idem, 2012), por exemplo, correu silenciosamente por fora dessa discussão e se tornou, segundo o site Box Office Mojo, o quinto filme mais rentável do gênero, rendendo quase US$ 34 milhões de dólares, mesmo com as críticas dos meios especializados sendo mais que desfavoráveis a ele. O filme foi produzido por Dinesh D’Souza, um popular comentarista político conservador dos EUA que também lançou outro sucesso de não-ficção, “Hillary’s America” (2016).

No The Globe and Mail, Barry Hertz traz uma provocação instigante ao se questionar como a realidade de uma América trumpficada será representada pelos próximos quatro anos, no mínimo. Por um lado, Hollywood pode posicionar-se como oposição, como vemos hoje entre oscarizados como Robert De Niro, zoeiros como a equipe do Saturday Night Live (que vem dedicando cada vez mais quadros à Trump) ou engajadíssimos como Michael Moore, mas com o cuidado não de se autopromoverem apenas, mas de fazer os eleitores de Trump refletirem verdadeiramente sobre o que essa liderança significa para os EUA. A outra opção é avaliar se os EUA realmente querem isso, o que parece ser o caso quando se avalia, por exemplo, a popularização dos filmes tidos como evangélicos/conservadores, tais como “Deus não está morto” (God’s not dead, 2014) e “Você acredita?” (Do you believe?, 2015), ou o interesse em produções como os documentários de Dinesh D’Souza.

Independente do que a indústria de entretenimento e o público quiserem a partir de 2017, não é de hoje que a chamada Sétima Arte é palco de embates político-ideológicos (De Serguei Eisenstein a Oliver Stone, o que não falta é filmografia para exemplificar!), e a era Trump promete comprovar isso de maneira escancarada nos próximos anos mais uma vez.

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*Fonte dos dados: Internet Movie Database