De uns tempos pra cá, a palavra “Bollywood” entrou para o vocabulário pop do planeta, e mesmo aqueles que nunca viram um filme indiano já ouviram falar na pujante indústria cinematográfica local, que lança filmes aos magotes e até exporta um ou outro astro para o lado de cá – como o músico A. R. Rahman, que já emprestou seu sparśa de Midas a Mick Jagger, ou o ator Dev Patel, visto recentemente em Chappie.

Toda essa abundância, porém, seria impensável há seis décadas, quando o cinema na Índia mal dava os primeiros passos. Foi preciso um Satyajit Ray para que a Sétima Arte se fizesse revelar na terra de Ganesha e Vishnu. Quando esta veio, porém, o cinema indiano já nasceu maduro. E sublime.

Ladrões de Bicicleta (1948)Formado em economia por insistência da mãe, o futuro diretor nunca escondeu, porém, o fascínio pelas artes. Colecionador da pintura e poesia tradicionais indianas, Ray também foi um apaixonado por música clássica e, principalmente, pelos filmes que vinham do Ocidente. O evento decisivo em sua vida foi o contato com Ladrões de Bicicleta (1948). O clássico neorrealista de Vittorio De Sica teve um impacto tão forte sobre o jovem cinéfilo que Satyajit Ray diria, anos depois: “eu saí daquela sessão decidido a me tornar cineasta”.

À luz de sua longa e próspera filmografia (36 filmes), pode-se dizer que poucos diretores se desincumbiram tão bem da tarefa. O feito é ainda mais notável por se tratar de um cineasta trabalhando na Índia, país (então) de cultura cinematográfica incipiente, sem recursos técnicos, e sem pessoal qualificado para funções tão delicadas como montador, iluminador ou diretor de arte. Pois Ray, a exemplo de John Ford nos Estados Unidos, Kurosawa no Japão ou Buñuel na Espanha, inventou, a seu modo, o cinema de seu país, enriquecendo-o com um talento e maturidade que o próprio cinema indiano, como um todo, levaria décadas para igualar.

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O primeiro problema para quem, sendo brasileiro, decide navegar pelo “oceano” Satyajit Ray, é também o mais básico e ingrato de todos: onde assistir a seus filmes? Embora seja considerado um dos maiores cineastas de todos os tempos – em 1992, a revista inglesa Sight and Sound o colocou na sétima posição, acima de Akira Kurosawa e de qualquer outro diretor asiático –, os seus filmes quase não chegam às lojas do país, e, quando muito, existem em cópias precárias, quase sempre importadas a preços ultrajantes. Mesmo no mundo dos (cof, cof) downloads e torrents da vida, as obras do indiano são quase um segredo de estado, confinado a poucos e felizes, de existências imensuravelmente mais ricas pelo contato com a “trilogia de Apu” e seus outros (inúmeros) clássicos.

A missão foi árdua até para este que vos escreve, que precisou garimpar com o ímpeto de um Indiana Jones atrás dos tesouros do indiano. Mas, afinal, como disse Kurosawa: “não ter visto o cinema de Ray é como existir sem ter visto o sol e a lua”. Mesmo em sua parcimônia, ir atrás dos filmes de Satyajit Ray é uma experiência das mais gratificantes para os apaixonados por cinema, por toda a sua riqueza de temas, sua inteligência e sensibilidade, seu apuro e elegância técnicos, seu humanismo compassivo e poético. Aqui vai, então, um pequeno e humilde guia com as obras mais representativas da multifacetada carreira do indiano. São os filmes mais notáveis, os mais premiados e também os mais fáceis de serem achados em lojas e na internet, na pequena e estrita medida do possível.

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A “trilogia de Apu” (1950-1959)

Mais do que qualquer outra coisa, Satyajit Ray é conhecido pela “trilogia de Apu”. Os filmes – A Canção da Estrada (1955), O Invencível (1956) e O Mundo de Apu (1959) – formam um mundo à parte no universo do cinema, com seu olhar agudo e poético sobre a vida do personagem-título, um garoto que experimenta as agruras e pequenas felicidades da vida em família, na Índia do início do século. O primeiro filme é a estreia de Satyajit Ray no cinema, e um dos filmes mais aclamados da história, com sua combinação única de realismo e lirismo, a fotografia deslumbrante de Subrata Mitra (outro genial debutante), a música de Ravi Shankar e, ainda, as interpretações cativantes do elenco, quase todo amador. Foi um sucesso imediato e fulminante, rendendo elogios de cineastas como John Huston e Kurosawa, uma temporada de sucesso nos Estados Unidos e, o mais importante, assegurando o financiamento para os próximos filmes de Ray, então tolhido por dívidas e pela falta de equipamento de qualidade.

Mesmo com tantas virtudes estupendas, A Canção da Estrada pode não ser o melhor filme do cineasta. É que os dois outros volumes da trilogia, O Invencível e O Mundo de Apu, são tão bons quanto, e – arrisco dizer – talvez ainda melhores. Mantendo as qualidades do primeiro, os filmes adensam a psicologia do protagonista Apu, e criam momentos de rara coragem e maturidade no cinema. O que dizer, por exemplo, dos embates entre Apu (Smaran Ghosal) e sua mãe, Sarbajaya (Karuna Banerjee), em O Invencível? Ou os caminhos sempre surpreendentes, e quase sempre trágicos, da trama de O Mundo de Apu? São lições de integridade cinematográfica, jamais sacrificando a história ao sentimentalismo ou a saídas “fáceis”, agradáveis para o público. Estes são os filmes que fizeram a reputação do diretor, e hão de ser seu emblema mais reluzente e duradouro, enquanto houver cinema.

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Kanchenjungha e A Esposa Solitária: 1960-1964

Começando com A Deusa (1960), ótimo drama estrelado pela protagonista de O Mundo de Apu, Sharmila Tagore, o cinema de Satyajit Ray começa a se afastar do retrato delicado da pobreza, para confrontar as injustiças e arcaísmos da sociedade indiana. O resultado é mais uma série de filmes marcantes, dos quais dois merecem destaque na obra do diretor.

Kanchenjungha (1962) é um dos trabalhos mais surpreendentes de Satyajit Ray, empregando técnicas que só seriam aproveitadas novamente uns bons trinta anos à frente: o chamado hyperlink film, aquele mix de histórias paralelas, múltiplos personagens e avanços e recuos no tempo, que fez a fama de filmes como Short Cuts: Cenas da Vida (1993), de Robert Altman, e Babel (2006), de Alejandro González Iñarritú, ambos tidos como típicos produtos da era pós-moderna. Pois Ray, numa década e local distantes na memória ocidental, fez um dos melhores hyperlink films, um drama inteligente e ágil, que traz ainda mais um show de fotografia de Mitra, e atuações intensas do elenco.

A outra joia do período é A Esposa Solitária (1964). Novamente agregando experimentação formal – o rigoroso encadeamento das imagens, que Ray comparou ao desenvolvimento dos temas numa sinfonia de Mozart – a um conteúdo emocional denso – o retrato da paixão entre uma mulher casada (Madhabi Mukherjee) e seu cunhado (Soumitra Chatterjee), nascida da solidão de ambos –, o diretor indiano fez o que boa parte da crítica e dos estudiosos considera sua maior obra. Certamente, um dos filmes mais poéticos e emocionantes do diretor de A Canção da Estrada.

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Goopy Gyne Bagha Byne, Dias e Noites na Floresta e a “trilogia de Calcutá”: 1965-1975

Já estabelecido como um dos grandes nomes da era de ouro do “cinema de autor”, entre os anos de 1950 e 60, Satyajit Ray continua a devassar as contradições da população indiana, levando seu cinema a caminhos formais cada vez mais surpreendentes.

Com Goopy Gyne Bagha Byne (1969 – sem título nacional: traduz-se por As Aventuras de Goopy e Bagha) Ray atinge o auge do sucesso comercial na Índia. Misturando números musicais e sequências de ação, a obra retrata a jornada da dupla do título, que recebe poderes mágicos para impedir o conflito entre dois reinos rivais. Uma obra mais ágil, voltada ao público infantojuvenil, Goopy põe em relevo a inventividade visual do diretor, assegurando mais uma vez sua posição no cinema indiano, então em franca evolução.

Um parêntese: data dessa época a polêmica envolvendo o roteiro de E.T. – O Extraterrestre. Em 1967, uma história original de Ray, The Alien, sobre o relacionamento entre um alienígena e um garoto solitário, foi apropriada por um picareta de Hollywood, Mike Wilson. Wilson, que propôs representar Ray em Hollywood, pirateou a trama do indiano, e é possível que uma de suas cópias, que circulavam nos Estados Unidos desde pelo menos 1968, tenha sido mais do que inspiração para o filme de Steven Spielberg, lançado em 1982. Ray chegou a acusar o diretor americano de plágio, mas não abriu processo formal. O episódio, porém, serviu para abalar de vez suas relações com Hollywood.

De volta à carga, Ray fez uma série de filmes de cunho social e político que, mais uma vez, o puseram na situação de intérprete do país, desnudando em imagens os conflitos mais íntimos da população indiana.

Dias e Noites na Floresta (1971) é seu melhor trabalho do período. Animado pelas teorias de humor “carnavalesco” do crítico russo Mikhail Bakhtin (nada em comum com a acepção brasileira; o “carnavalesco”, aqui, é uma forma de subverter as convenções sociais através do deboche e do caos), e empregando uma estrutura ainda mais hipnótica que a de A Esposa Solitária, Dias satiriza os hábitos da classe média indiana, encarnados na história de quatro rapazes, cujo retiro na floresta é perturbado pelo encontro com três mulheres.

A seguir, Ray produziu a “trilogia de Calcutá”, nome informal dado a três filmes que se conectam por um tema comum: a análise da corrupção na sociedade indiana. O Adversário (1970), Seemabaddha (1971) e Jana Aranya (1975) retratam, cada um a seu modo, o preço que os hindus, na convulsão dos anos de “modernização” do governo Indira Gandhi (1966-1977), pagaram pelo crescimento econômico e a ascensão social a todo custo.

Satyajit Ray

Os Jogadores do Fracasso e os anos finais: 1976-1992

Popular e respeitado mesmo após as controvérsias políticas de seus últimos filmes, Satyajit Ray embarca naquele que talvez seja seu último grande projeto: Os Jogadores do Fracasso (1977). Uma crítica mordaz tanto da dominação inglesa quanto da letargia das elites hindus, Jogadores é ambientado às vésperas da primeira Rebelião Indiana (1857). Vista em retrospecto, a obra é talvez a mais ambiciosa de Ray, reunindo astros da nascente Bollywood com nomes de prestígio do Ocidente, como o britânico Richard Attenborough, além de combinar sets luxuosos e uma narrativa épica.

Ao alternar entre trabalhos menos grandiosos, como a continuação de Goopy Byne, Hirak Rajar Deshe (1980), e outros mais experimentais, como o aclamado curta Pikoo (1980), Ray se manteve vital e produtivo até seu filme final, O Estrangeiro (1991). Mas já sem o mesmo tino. Problemas sucessivos de saúde, que começaram com o infarto sofrido durante a produção de A Casa e o Mundo (1983), acabaram minando a energia de Ray, outrora famoso por supervisionar cada detalhe de suas produções, chegando a compor ele mesmo a música de seus filmes. Com vários projetos abortados, e outros só parcialmente realizados (Shakha Proshakha, de 1990), o diretor foi obrigado a se aposentar em 1992, ano em que, já gravemente doente, recebeu o Oscar honorário de Hollywood, entregue pessoalmente por uma de suas maiores admirações, a atriz Audrey Hepburn.

O pungente discurso de agradecimento, onde um Ray à morte disse ser esta a maior conquista de sua carreira, serviu apenas para reforçar a humildade e delicadeza de um dos grandes humanistas do cinema, cujo projeto foi iluminar e encher de lirismo a vida dos menos favorecidos, retratando os dilemas dos mais pobres, das mulheres, das vítimas da dominação política, colonial e social. Ao acrescentar a estes retratos sua imensa sensibilidade humana e poética, Satyajit Ray ajudou a iluminar o próprio cinema, frequentemente tão perdido às voltas do seu próprio e, não raro, desumano umbigo.