O deputado Francis Underwood chegou para mudar o cenário, não só da Casa Branca, mas também o da televisão. “House of Cards”, o seriado que tem Underwood como protagonista, é a primeira investida do Netflix, o provedor da internet que disponibiliza filmes e séries on-line, numa nova forma de distribuição de conteúdo televisivo. A primeira temporada foi disponibilizada de uma tacada só, via Netflix, e o publico teve a experiência inédita de poder assistir a todos os episódios da forma como quisesse, sem ter que esperar treze semanas para ver como a história se desenvolveria.

Se a liberdade proporcionada pela forma como “House of Cards” foi disponibilizada foi inédita, seu conteúdo segue um dos mais velhos truques da teledramaturgia: geralmente, é muito divertido assistir a um bando de personagens sacaneando uns aos outros. A série produzida por Beau Willimon – autor da peça que inspirou o longa “Tudo pelo Poder” (The Ides of March, 2011), dirigido por George Clooney – e pelo renomado cineasta David Fincher, diretor dos dois primeiros episódios, é basicamente isso, uma grande sacanagem armada pelo protagonista como forma de se vingar e de chegar mais próximo ao posto mais alto da Casa Branca. “House of Cards” é baseada num livro, que por sua vez inspirou uma minissérie britânica de mesmo nome.

Quando a série começa, Frank Underwood (vivido pelo especialista em personagens dúbios Kevin Spacey) é o líder no congresso do Partido Democrata, o mesmo partido do presidente recém-eleito. No entanto, sua aguardada “promoção” para Secretário de Estado não acontece, apesar de ter havido um acordo para isso durante as eleições. Ao invés disso, o presidente escolhe outro, o senador Michael Kern (Kevin Kilner), para o cargo. Sentindo-se passado para trás, Underwood decide então se vingar dos que o traíram, e começa sutilmente a manipular as peças do tabuleiro para conseguir o que ele julga ser seu direito.

As peças mais importantes nesse tabuleiro são a jornalista Zoe Barnes (Kate Mara) e o congressista Peter Russo (Corey Stoll). Zoe é uma repórter ambiciosa e subutilizada no jornal (fictício) Washington Herald que se alia de bom grado a Underwood. O deputado passa a servir como fonte para a moça, mas obviamente, ele só lhe fornece furos capazes de lhe beneficiar. Já Russo luta contra seus demônios pessoais – alcoolismo e drogas – e graças às suas fraquezas acaba se tornando leal a Underwood.

Este, por sua vez, é o sol (ou melhor dizendo, o buraco negro) em torno do qual todos os acontecimentos da série giram. Spacey é, como esperado, sensacional no papel, adotando um sotaque sulista e um comportamento dominado pelo cinismo. Uma das características diferenciadas da série é o fato de Underwood frequentemente “quebrar a quarta parede” da narrativa e começar a falar conosco, os espectadores. Seus comentários sempre cortantes e engraçados nos divertem, e pior, fazem de nós cúmplices do personagem. Frank Underwood é um anti-herói completo, por quem o publico sente ao mesmo tempo atração e repulsa.

Mais à frente na temporada, aprendemos fatos que o tornam ainda mais interessante: descobrimos a real natureza do seu casamento com Claire (Robin Wright), uma viagem de reencontro com antigos colegas deixam no ar sugestões de que ele possa ser bissexual, e seu relacionamento sexual com Zoe é um risco que ele parece disposto a correr, mas sempre tendo em mente o seu objetivo de poder. Afinal, uma das suas falas mais incríveis na temporada é “Tudo no fim das contas tem a ver com sexo. Exceto o sexo. Sexo tem a ver com poder”.

No entanto, o verdadeiro arco dramático da temporada pertence ao personagem Peter Russo. Ao longo dos episódios ele desce ao fundo do poço por conta de seus vícios, apenas para ser resgatado por Underwood. Porém, a mesma mão que o salva pode destruí-lo mais à frente… De todos os membros do elenco, Corey Stoll deixa a maior impressão no espectador – o simples fato de não ser ofuscado por intérpretes como Kevin Spacey ou Robin Wright comprova seu talento. Definitivamente, é um ator para se observar nos próximos anos… Ele é a figura mais humana da série: Enquanto os demais vivem no mundo de Washington, enredados nas tramoias do poder, Russo vem do mundo real e as pessoas que o cercam também parecem reais – sua namorada (Kirsten Connoly) e seus filhos.

Mas o fato de Russo ser, dentre todos os personagens da série, o mais fácil para o espectador se relacionar a prejudica de certa forma, já que os outros personagens simplesmente não se desenvolvem. Apesar de Robin Wright ser uma grande atriz, ela foi subutilizada no papel de Claire – suas cenas com Spacey funcionaram, mas os problemas delas no comando de uma organização contra poluição das águas, bem como seu caso com um fotógrafo, foram bem entediantes e adicionaram pouco à sua personagem.

O mesmo aconteceu com Kate Mara: Zoe começa interessante, mas ao longo da temporada passa a fazer coisas meio sem sentido (Experimentar roupas de Claire? Falar com o pai ao telefone enquanto transa com Frank?), e foi transformada em mero instrumento de trama em alguns momentos. Felizmente, o final da temporada promete novos desenvolvimentos para ela, mas Zoe deixou claro que os roteiristas de “House of Cards” preferem privilegiar trama em detrimento de personagem.

Na parte técnica, David Fincher ditou o tom e o visual da série nos episódios que dirigiu no início. O estilo visual da série é próximo dos trabalhos do diretor, e o clima frio dos bastidores do poder se transfere para o programa, frio em todos os momentos nos quais Underwood ou Russo não estão em foco. A trilha sonora atmosférica de Jeff Beal, no entanto, é excelente e contribui para o suspense.

Na primeira cena da série, Francis Underwood sacrifica com as próprias mãos um cachorrinho atropelado na rua. É um ato nobre e de piedade de um personagem que não apresenta muitas características nobres. É isso que faz dele, e por conseguinte a série do qual ele é o astro, interessante – as contradições inerentes ao ser humano. Pena que ao longo dos demais episódios, apenas ele, e também o personagem Peter Russo, pareceram realmente humanos.

No fim das contas, não importa se as pessoas podem ver uma série toda de uma vez ou aos pouquinhos, semanalmente. São os personagens, e não a trama, que ficarão na memória do publico. “House of Cards” é muito interessante e tem espaço para crescer, mas precisa investir tanto na humanidade dos seus personagens quanto investe nas tramoias políticas. Afinal, as tramoias políticas não importam se não repercutirem nas pessoas à sua volta, e apenas raramente o seriado mostrou essas repercussões. Alguém sempre paga pelas artimanhas de figuras como Francis Underwood no mundo real – um pouco mais de atenção nisso beneficiaria o programa.

Disponível em DVD no Brasil pela Sony Pictures Home Entertainment.