Em 1999, Elia Kazan subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, em Los Angeles, para receber o Oscar honorário pelo conjunto de sua obra e sua contribuição ao cinema. Geralmente, momentos como esse são acompanhados por aplausos unânimes, de pé, em uma grande ovação. Porém, a reação que se viu depois que Martin Scorsese e Robert De Niro anunciaram o nome de Kazan foi bem diferente. Enquanto nomes como Meryl Streep, Warren Beatty e o próprio Scorsese, visivelmente emocionado, aplaudiam entusiasticamente, outros tantos quanto Ed Harris, Nick Nolte e Ian McKellen permaneceram sentados, de braços cruzados. Era uma maneira clara de demonstrar que se opunham à homenagem que o diretor greco-americano recebia por seus mais de trinta anos de carreira.

Por mais deselegante que pareça, a manifestação tinha sua justificativa. Em 1952, Elia Kazan, então já desassociado do Partido Comunista, foi convocado pelo Comitê de Investigações de Atividades Antiamericanas para denunciar nomes ligados ao seu antigo partido. Vivia-se a era do macarthismo, em que a intensa patrulha anticomunista promovia uma verdadeira caça às bruxas, sem hesitar em desrespeitar direitos civis. A princípio, Kazan se recusou a colaborar com o comitê, mas acabou dando oito nomes de membros do Group Theatre que eram envolvidos com o Partido Comunista, e que foram parar na chamada “lista negra”.

Ainda que todos os nomes dados por Kazan já fossem conhecidos pelo comitê, o ato do cineasta o marcou negativamente para o resto da vida. A denúncia lhe custou amizades como o roteirista Arthur Miller e o ator Marlon Brando, que relutou por certo tempo até voltar a trabalhar com o diretor. A fama de delator acompanhou o nome de Kazan até sua morte, e o impediu de ser unanimidade mesmo no momento que deveria ser de consagração de sua carreira. Talvez uma das razões para tanto seja o fato de que Kazan nunca pediu desculpas publicamente pelo seu testemunho. Aparentemente, ele sempre acreditou ter agido certo.

A justificativa do cineasta e a resposta a seus detratores veio em 1954, na forma do clássico Sindicato de Ladrões. Embora baseado numa série de artigos publicados pelo repórter Malcolm Johnson no The New York Sun, e que denunciavam os atos ilegais de chefões que controlavam os trabalhadores das docas de Nova York, o filme de Kazan tem algo de muito pessoal e quase autobiográfico no modo em que trata um elemento importante para a história: a consciência.

Afinal, como o diretor, o protagonista Terry Malloy é um delator, e todo o conflito que permeia o filme surge a partir da sua crise de consciência e as consequências decorrentes de suas ações. Malloy (vivido por Marlon Brando) é um ex-boxeador que tinha um futuro promissor, mas depois de perder uma luta, se tornou um trabalhador decadente das docas, envolvido com o sindicato explorador e corrupto comandado por Johnny Friendly (Lee J. Cobb).

Quando um funcionário é assassinado pela gangue, Terry sente-se culpado e começa a ter dúvidas quanto ao papel do sindicato. Ao mesmo tempo, ele se envolve com a irmã do falecido, a jovem Edie Doyle (Eva Marie Saint), que busca saber o que aconteceu com o irmão. Malloy também se depara com o padre Barry (Karl Malden), que passa a assumir uma posição de liderança na comunidade a fim de denunciar o sindicato de Johnny Friendly.

A jornada de Terry Malloy ressoa, em maiores proporções, a jornada do próprio Kazan. Quando um personagem acusa Malloy de tê-los traído, ele grita de volta que era ele mesmo que estava se traindo durante todos esses anos, e nem mesmo sabia disso. É como se o próprio Kazan estivesse falando sobre sua relação com o Partido Comunista, sua desilusão e o que o levou a fazer o que fez. São dois homens em contextos diferentes, mas ambos tendo que lidar com a consciência e a consequência de seus atos, seja no universo ficcional ou no real.

A justificativa feita através do paralelo com o personagem pode até não convencer, especialmente quando se pensa naqueles que sofreram nas mãos do macarthismo da época, mas, ainda que se considere a ação do diretor reprovável, não há como negar que Sindicato de Ladrões é um trabalho primoroso. O investimento emocional do cineasta na história possibilitou que ele criasse um filme poderoso, e que permanece influente até hoje.

Tudo está bem alinhado no longa, e a produção é comandada com esmero por Kazan. É impressionante, por exemplo, como o diretor consegue lidar com elementos de gêneros diferentes com sucesso, desde o drama de crime, envolvendo as ações dos mafiosos, até o romance entre os personagens de Marlon Brando e Eva Marie Saint, e ações que lembram a estrutura de filmes de boxe, como se o padre Barry fosse uma espécie de treinador para Terry Malloy.

E que personagens! Por mais que o trabalho de atuação de Brando seja tomado como exemplo até hoje, é difícil destacar somente ele. Todos os atores principais são verdadeiras forças da natureza em seus papéis, e são beneficiados pelos elementos fílmicos bem trabalhados por Kazan. Basta reparar na transformação de Edie Doyle a partir de seu encontro com Terry Malloy: aos poucos, a moça troca seu casaco longo e fechado e seu rabo de cavalo por vestidos mais leves e que revelam mais de seu corpo, e um cabelo solto que lhe confere mais personalidade. Em determinada cena, ela se olha no espelho, pela primeira vez preocupada com a aparência. A relação com Malloy a transforma, assim como ele mesmo é transformado. E se engana quem pensa que a personagem de Eva Marie Saint vive em função do outro: ao mesmo tempo em que revela doçura e fragilidade, ela é capaz de ser impetuosa e explorar seu lado mais forte.

São personagens complexos, lidando com situações intrincadas possibilitadas pelo roteiro. O padre Barry é outro que foge completamente do que poderia ser uma caricatura religiosa, e se revela tão humano quanto os demais personagens, muitas vezes ostentando um cigarro que enfatiza, de certa forma, sua falibilidade quanto qualquer um.

Se fosse necessário escolher apenas uma cena para ilustrar o poder do filme, no entanto, seria o marcante diálogo entre os personagens de Brando e Rod Steiger no banco do táxi, quando Malloy confronta seu irmão sobre sua vida decadente e o futuro brilhante que ele poderia ter tido. São dois atores egressos do Actors Studio, adeptos do famoso “método”, e assistir o trabalho que eles realizam a partir de sua imersão nos personagens é admirável. Há uma tristeza real e quase palpável em cena. Ver Brando falando que poderia ter sido um campeão continua doloroso hoje, mesmo depois da cena em questão ter sido diversas vezes referenciada e parodiada – a mais famosa delas no epílogo amargo de Touro Indomável, de Martin Scorsese, declarado fã de Elia Kazan.

O amor acaba sendo a forma de redenção de Terry Malloy em Sindicato de Ladrões. E a cena final, em que ele sofre, é espancado, cai e se levanta diversas vezes, é o seu calvário, algo que de certa forma lembra o elemento religioso trazido em cena pelo padre Barry. Porém, Malloy consegue terminar esse calvário de cabeça erguida, e conquista o apoio daqueles que o acusaram de delator. Kazan não conseguiu o mesmo, e no fim da vida ainda sofria com a má reputação que seu ato lhe causou. Mas, como bem defendeu Budd Schulberg, roteirista de Sindicato de Ladrões, em um artigo escrito em 2009 para o The Guardian, está mais do que na hora de perdoar Elia Kazan por seus erros políticos. Não se trata de esquecer seus atos, mas sim lembrar de sua imensurável colaboração para a arte, através do cinema ou mesmo de seu trabalho no teatro.

E Sindicato de Ladrões é a prova maior do que um grande realizador e um legítimo artista como Kazan é capaz de construir: uma obra que atravessa gerações.