Resguardadas as devidas proporções, acho pertinente considerar Richard Kelly o Michael Cimino da geração pós-MTV e Southland Tales – O Fim do Mundo (2006), seu O Portal do Paraíso (1980).

Kelly se apresentou ao mundo com sua delícia de primeiro filme, Donnie Darko (2001), com o qual conseguiu unir os antes distantes mundos da física especulativa e do Tears for Fears. O filme virou um clássico cult instantâneo e nesse meio-tempo, Kelly começou a rascunhar o que viria a ser essa sci-fi épica e distópica, misturando conceitos bíblicos, esoterismo e oceanografia.

southland talesDiferentemente do clima opressor de seu primeiro filme, Southland Tales tem um tom satírico e ácido que o alinha à tradição das comédias irônicas (de uma forma mais cômoda do que a última que eu resenhei) e apresenta ferozes críticas à mídia – provavelmente é o melhor filme a fazer isso desde Assassinos por Natureza (1994).

Não que o filme esteja isento de opressão: o filme conta a história alternativa de um 2008 em que uma extrema direita (personificada pela vilã interpretada pela excelente – e saudosa – Miranda Richardson) restringiu a liberdade e os direitos civis americanos após um ataque nuclear atingir os EUA e desencadear uma guerra que devassou o Oriente Médio (qualquer semelhança com a realidade é apenas coincidência).

Considerando isto, é estranho que um filme que muitos alegam não fazer sentido tenha um pano de fundo tão real. Ele é até otimista se você parar para pensar em como as coisas realmente aconteceram de 2008 para cá. Grande parte das tensões do filme gira em torno da eleição presidencial daquele ano e é implicado que terríveis ataques à liberdade podem acontecer caso o Partido Republicano ganhe. De fato, a eleição no mundo real foi ganha pelo Partido Democrata, mas nem ele foi capaz de impedir esse curso de eventos (levando em conta as revelações de Edward Snowden).

No campo da interpretação, é notável como Kelly consegue usar a estranheza que seus atores têm com o roteiro como forma de imprimir um ar mais estranho a cenas que seriam normalmente comuns. Na boa, só pela ousadia de nos apresentar um filme com o The Rock interpretando um ator (entenderam?), Sarah Michelle Gellar interpretando uma performer erótica (com direito a um curto número musical chamado “Tesão Adolescente Não É um Crime”) e Seann William “Stifler” Scott como irmãos gêmeos em apuros (no que pode ser a melhor e mais bizarra atuação de sua carreira), o diretor merece algum tipo de crédito.

southland tales the rockA maior parte das críticas desse filme se concentra no fato da trama ser virtualmente incompreensível. Parte disso é má fama: assim como O Portal do Paraíso, Southland Tales sofreu com os efeitos publicitários de uma versão inacabada que foi exibida em momento errado (e criticada por isso).

A outra parte que provavelmente ninguém entendeu é que, neste longa, como na maior parte dos filmes que se vendem como sci-fi mas são outras coisas (como Star Wars, talvez o maior exemplo disso), a trama é um meio e não o fim. Então não, sinceramente não acho que Kelly tenha interesse em explicar o que é Karma Fluído (veja o filme), e sim, em suas consequências. E quanto à suposta loucura da empreitada como um todo, bom, David Lynch faz isso o tempo todo e não é atacado como Kelly foi por esse filme – quero dizer, não é atacado desde Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer (1992).

Por melhor que Donnie Darko seja, é Southland Tales que me faz constantemente checar o IMDB atrás de alguma novidade de Kelly. O projeto parece se deliciar com suas pontas soltas (existe até uma série de três graphic novels que serve como prequel ao filme) e com sua própria absurdez, e é tanto melhor por isso.

Recentemente, O Portal do Paraíso foi exibido em uma nova “versão do diretor” que foi ovacionada, e sua recepção hostil em 1980 foi tida como um crime. Quem sabe se Southland Tales será o próximo a ganhar uma releitura nesses moldes? O Kelly já disse que topa uma nova edição.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.