Chega nossa programação da semana via e-mail. “Spotlight – segredos revelados” é o meu filme da vez. Obra bem cotada no Oscar, com notícias favoráveis que trato de não aprofundar muito a leitura, para não acabar influenciando a crítica. Hora de ir ao cinema. Após assistir à “Spotlight – Segredos revelados”, as primeiras impressões começam a ganhar forma e gerar o esqueleto para a crítica.

Bom filme, respeitoso com o tema delicado, ótimo encaminhamento dado ao roteiro. Todas as peças do quebra-cabeça unem-se harmoniosamente para que o espectador compreenda e faça parte da investigação de um grupo de jornalistas sobre abusos sexuais cometidos por padres em Boston. É uma dessas histórias chocantes que você gostaria muito que não viessem com o selo de “baseado em fatos reais”, mas que realmente aconteceram, e que, com a devida campanha nos bastidores, ganha algum prêmio facilmente no Oscar.

Sua máxima culpa

Mas falta algo à “Spotlight”. Tento descobrir o que é. A primeira referência que vem à mente é o documentário “Mea maxima culpa: silence in the house of God”, de Alex Gibney, que dá luz ao caso de um grupo de deficientes auditivos que foram abusados sexualmente por padres desde os anos 1960, e cujos esforços culminaram na revelação de outros inúmeros crimes sexuais cometidos por clérigos da Igreja Católica. No documentário, o horror passado pelas vítimas é quase palpável ao espectador. Além disso, o abuso psicológico narrado pelos sobreviventes é tão ou mais chocante que o físico. Não soa como algo que você lê numa notinha de jornal, impessoal, sem dar uma real dimensão do que essas pessoas passaram.

Porém, não se pode pedir a “Spotlight” algo que foge à sua proposta. Afinal, o longa de Tom McCarthy finca o pé no trabalho dos jornalistas, e não nas vidas dos sobreviventes. Nesse sentido, o filme se torna bastante interessante por desvelar um pouco dos trabalhosos processos do jornalismo investigativo, no qual os profissionais fazem muito mais que coletar dados, interligando-as de maneira a apresentar, de fato, informação.

Termos da área, como “clipping” ou “suíte”, desfilam pela tela e o espectador mais atento os compreende pelo contexto. O filme também presta um serviço ao mostrar o quão lento pode ser o processo de apuração para uma história realmente relevante, relembrando aos estudantes e profissionais da área (e explicando aos demais) que bom jornalismo também se faz debruçando-se sobre velhos arquivos e ligando pontos cuja proximidade não é aparente. É preciso pensar.

Se, por um lado, não se pode pedir à “Spotlight” algo que foge à proposta do filme, por outro lado, pode-se pedir dele algo que falta a ela. A mente continua vagando em busca do que seria essa coisa que me gera incômodo no âmago de um filme que pode ser considerado bom, interessante. Essa “procura mental” esbarra em tudo que assisti no decorrer do mês, até que uma obra parece dar a resposta: a série “Black Mirror”!

Assisti à primeira temporada da série até agora. Em especial no episódio-piloto, o espectador tem uma noção muito clara do incômodo gerado ao personagem principal frente à situação que em que a trama o coloca. É justamente essa a peça que falta à “Spotlight”. Temos Robby (Michael Keaton), o líder da equipe de jornalistas da publicação-título, que estudou no mesmo colégio católico no qual, posteriormente, descobre-se que um padre molestou um aluno. Temos Mike Rezendes (Mark Ruffalo), o jornalista workaholic. Temos Sacha (Rachel McAdams), a repórter que vive com a avó católica fervorosa. Apesar dos três encabeçarem as investigações, pouco se vê de como ela realmente os afeta, ou como virá a afetar a comunidade.

Claro, há a excelente cena em que Ruffalo desembucha ao chefe a sua ira contra tudo que descobriu através do trabalho, a qual não podemos desmerecer (a Academia certamente não desmereceu). Mas, de maneira geral, o filme dá aos jornalistas certeza demais de que todos os podres cometidos pelos padres molestadores, seguidos pelo acobertamento feito pelos líderes religiosos hierarquicamente superiores, devem vir à tona. Olhando em retrospecto, é óbvio que sim, mas é difícil acreditar que esses profissionais não tenham tido momentos de dúvida no desenrolar das descobertas, sabendo o que a religião significa em sua comunidade e como todos aqueles crimes gerariam uma cicatriz espiritual difícil de ser sanada. Como bem expõe uma fala de um clérigo em dado momento do filme, as pessoas precisavam, mas que nunca, de algo em que acreditar na época. A época em questão foi nada mais, nada menos, que o 11 de setembro de 2001.

Dessa forma, Sacha sofre ao pensar na reação da avó ao ler as reportagens do Spotlight. Robby sente que foi puro acaso ele próprio não ser uma das vítimas. Rezende diz não conseguir voltar à Igreja. Mas o filme nunca dá a eles a humanidade do medo, da tentação de virar os olhos em asco, mesmo sendo jornalistas. Dessa maneira, os personagens mais humanizados acabam sendo figuras como Ben Bradley Jr. (John Slattery), que duvida da dimensão e gravidade dos abusos sexuais até o último momento simplesmente porque é difícil demais encará-los; ou como o editor Marty Baron (Liev Schreiber), que parece ter essa noção do trágico em longo prazo, ainda que sua expressão seja internalizada; e o próprio Cardeal Law (Len Cariou), que varre vergonhosamente os casos de abusos para debaixo do tapete porque “o bem que a igreja traz é maior que isso”. Tais personagens encaixam-se sutilmente nessas reflexões, ao contrário dos personagens principais, que ganham pequenas falas pontuais para tentar mostrar isso.

As demais peças do quebra-cabeça chamado filme  

Solucionado o mistério que impede que “Spotlight” seja um filme excelente, seria injusto não destacar os motivos de, ainda assim, ser muito bom. Um ponto que poderia passar batido facilmente é o cuidadoso trabalho da direção de arte, que traz 2001 de volta às telas com apurada atenção aos detalhes. 15 anos nos separam dos acontecimentos de “Spotlight”, mas o ritmo acelerado dos dias desde então seria uma armadilha fácil para causar confusão nas reconstituições da época.

A trilha sonora minimalista de Howard Shore realiza uma dupla função: por um lado, preenche alguns dos vazios emocionais aqui apontados no interior filme; por outro, intensifica sutilmente as tensões já claras na tela, sem torná-las redundantes. Shore, mais conhecido esses dias pelas trilhas das sagas de “O Senhor dos anéis” e “O hobbit”, mostra uma interessante versatilidade ao manter esse trabalho tão sóbrio quanto o tratamento do tema em “Spotlight”, o que, nesse caso, resulta numa trilha sonora instrumental curiosamente poderosa.

Voltando à temática do filme, vê-se um tratamento respeitoso com o retrato formado para as vítimas, algo importante num filme baseado em fatos reais. O destaque maior vai ao fato de que, no filme, os padres abusadores se aproveitavam de crianças em situação de pobreza ou carência familiar, logo, mais fragilizadas, mas isso é tratado de maneira a não explorar o grotesco da situação. Apenas uma cena em particular rompe essa regra. Trata-se do momento em que Sacha entrevista brevemente um ex-padre acusado de molestar uma criança e ele responde, sem qualquer sentimento de culpa, que cometeu o crime, explicando, dentro de sua lógica, porque a ação seria aceitável. Tristemente, documentários como o já citado “Mea maxima culpa” dão conta de expor que a mesma linha de raciocínio do personagem é seguida por muitos outros clérigos abusadores, de forma que até o grotesco finca os pés na realidade.

Também se vê a escolha variada de personagens assinalados como vítimas (tem-se um provável viciado em drogas, um engajado líder de grupo de sobreviventes, um bem-sucedido empresário, dentre outros), mostrando a possibilidade de continuar a vida para além do trauma. Boas ou ruins, essas pessoas são esquecidas pela sociedade num processo que vem de cima para baixo, no qual autoridades abrem concessões para que as denúncias contra os abusadores nunca vejam a luz do dia. Isso também é explicitado no longa através de acordos entre clérigos, polícia, advogados, juízes e, eventualmente, entre as próprias vítimas e suas famílias, estas últimas crentes de que lidavam com casos isolados de abuso, quando na verdade realidade e ficção apontam para uma epidemia institucionalizada de permissividade ao estupro e assédio sexual dentro da igreja.

Dessa forma, o roteiro traz maior complexidade ao assunto ao distribuir a culpa e é bem sucedido, por sua clareza sem grandes didatismos, de mostrar tudo isso. Com tantas possibilidades de passar da medida ao tratar de um assunto tão bombástico, a sobriedade de “Spotlight” é um trunfo criativo que lhe rende pequenas falhas, mas que estão longe de comprometer a estrutura do todo.