Em tempos menos inocentes como os nossos, os filmes musicais são um anacronismo provavelmente sem lugar. Desde a morte de Bob Fosse (1927-1987), talvez o único nome a conseguir mesclar gente cantando (grande música) e dançando (grande dança) à nova sensibilidade sombria surgida na ressaca da Guerra Fria, Vietnã e afins, nada parece capaz de restaurar o gênero ao seu lugar de direito, como uma das coisas mais belas, empolgantes e, principalmente, cinematográficas que o cinema foi capaz de produzir.

Assim como o western, o filme musical declinou nos anos 1970 e continua solidamente enterrado, a despeito dos esforços bem-intencionados de Woody Allen (Todos Dizem Eu te Amo), Rob Marshall (Chicago), Tim Burton (Sweeney Todd), Tom Hooper (Os Miseráveis) e outros camicases. Até os poucos exemplares bem-sucedidos (comercialmente, digo) de safra recente (Mamma Mia!, Rock of Ages, A Escolha Perfeita 2, ou Glee, na televisão) devem seu sucesso mais a fatores extra-musicais – hype, astros, o fator feel-good – do que ao apelo de ver gente cantando e dançando na telona. Da música, então, nem se fala. Cole Porter, George Gershwin, Stephen Sondheim, Betty Comden e Adolph Green deram lugar aos Bee Gees, a Andrew Lloyd Weber, ao Abba e até mesmo ao Journey (em Rock of Ages, divertido e bonitinho, mas, nessa companhia, um sonoro nada).

Podem-se culpar os novos tempos, a indústria musical, as plateias, a política, o avassalamento da canção popular pelo rock e por modas rasteiras, mas não o grande time que, dos anos 30 até pelo menos 1956, cantou, dançou e estampou divinamente a tela e as vidas de milhões de pessoas pelo mundo com sangue, suor, afinação, ritmo e beleza. Refiro-me a gente como Fred Astaire, Gene Kelly, Frank Sinatra, Doris Day, Cyd Charisse, Ann Miller, Carol Chaney e até ao próprio Fosse.

Em comum a todos esses nomes, está a figura do diretor e coreógrafo Stanley Donen.

Aos 91 anos, e ainda buscando novos projetos, Donen é o último remanescente da chamada Hollywood clássica, uma época (entre 1930 e 1960) em que os estúdios americanos, no auge do poder e do prestígio, atraíam os maiores talentos para produzir entretenimento em escala industrial. A palavra ganhou uma conotação pejorativa, sendo associada a alienação, conformismo e outras indignidades, mas também quer dizer a capacidade de agradar, de alegrar, de – também, e por quê não? – distrair o espectador, elevá-lo por algumas horas para longe dos problemas. É o que deveria ser, mas essas coisas passaram a pegar mal nos anos 1970, quando a noção de grande entretenimento – reunir gente talentosa e criativa pra fazer o que sabe fazer melhor – deu lugar, primeiro, a filmes sérios, com conteúdo (a voga dos 70), e, depois, a filmes de ação barulhentos e comédias escrachadas (a regra dos anos 80 até hoje), em que os poucos exemplares inovadores são reprisados em milhares de imitações. Cantar num filme passou a ser visto como algo artificial, açucarado, nada a ver com a vida real – como se esta fosse a matéria-prima do cinema, por definição o reino do larger than life.

Antes disso, Donen fez o que pôde para que o musical mostrasse a melhor face do cinema de entretenimento, com seus dançarinos e cantores supremos, entregando a cada filme pelo menos uma sequência antológica envolvendo canto e dança, numa escala que teatro nenhum seria capaz de produzir. Os roteiros podiam não ser grande coisa, meras escadas para os números musicais, mas, com tal nível de canto e dança em cena, como aquilo não poderia ser arte? Stanley não saberia explicar – porque ele próprio teve a sua vida transformada ao ver Fred Astaire em ação.

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Nascido em 1924 na cidade de Columbia, na Carolina do Sul, Stanley Donen era admirador de Fred Astaire desde a infância, quando, como todas as crianças de sua geração, ia ao cinema com uma devoção quase religiosa, para fugir às agruras da crise de 1929. Foi uma época em que as comédias, os musicais e os filmes de gângster eram, mais do que divertidos, necessários. Pelo tempo de duração do filme, o espectador podia se entregar aos grandes romances, sentir-se vingado dos bandidos e corruptos, ou cantar e dançar como um astro – coisas que parecem ingênuas e sentimentais aos olhos de hoje, mas que aliviavam a dureza do cotidiano miserável e desesperançado da vida real naqueles anos. Por causa dos filmes, Donen, como toda uma geração de meninos e meninas, tomou aulas de canto e dança e foi à luta nos teatros, clubes e competições de amadores, decidido a tentar reproduzir, com seu esforço, os encantos que o cinema lhe proporcionara na meninice.

Foi nessa luta pela notoriedade que Donen encontrou seu grande parceiro na arte – nem tanto na vida, como hoje sabemos: Gene Kelly. Doze anos mais velho, ambiciosíssimo, e um verdadeiro dínamo nos palcos, Kelly também sabia reconhecer o talento alheio, razão pela qual fechou com Stanley para ser seu assistente pessoal. Foi ao lado do grande dançarino que Donen chegou a Hollywood, onde, de cara, criou para Kelly e o diretor Charles Vidor a sequência em que Gene dança com o próprio reflexo, em Modelos (1944). Para o astro, foi a agradável constatação de que Stanley era ainda melhor do prometia: o homem não só tinha grandes ideias para coreografias, como sabia explorar as possibilidades do cinema, como enquadramento, iluminação e efeitos. Foi a senha para que ambos ganhassem respeito na MGM e começassem a desovar, em dupla, a maior sequência de musicais que Hollywood – e o mundo – já viram.

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De 1949 a 1955, Stanley Donen e Gene Kelly produziram uma série inesquecível de musicais, cada um mais surpreendente e esfuziante que o outro. A princípio limitados a coreografar os números, a dupla emplacou, de saída, a antológica dança de Kelly com o rato Jerry (rival de Tom) em Marujos do Amor (1945), a sequência mais lembrada da obra até hoje. Um prodígio de tecnologia pré (bota ‘pré’ nisso) computação gráfica, o número levou um ano sendo finalizado por Donen, mas saiu com aquele desfile inesquecível de cores, agilidade e euforia em cena.

Um novo tipo de musical vinha sendo gestado pelos dois. Até a entrada de Stanley e Gene em cena, o gênero tinha vivido duas grandes fases: a de Busby Berkeley, na década de 30, marcada pela manipulação de grandes massas humanas, em formações surpreendentes e insólitas, mas escondendo o fato de que ninguém ali sabia dançar; e a do musical “realista”, instituído por Fred Astaire na virada da década, onde a câmera passaria a filmar o dançarino de corpo inteiro, em longos planos e com o mínimo de cortes, para enfatizar a habilidade dos craques e espantar enganadores (curiosamente, a dança no cinema voltou a ser cheia de firulas). Kelly e Donen partilhavam desse credo, mas achavam que as regras rígidas de Astaire tiravam pouco proveito das oportunidades que o cinema oferecia. Nas grandes sequências de Modelos e Marujos, os planos continuavam longos, e Kelly era retratado em toda a sua soberbia atlética, mas as brincadeiras com o espelho e o ratinho levavam essa arte a um outro patamar, além do realismo. Por isso, da próxima vez que aquele seu conhecido criticar os musicais porque estes não têm nada a ver com a vida real, de desencanto, poluição e violência, lembre-o do óbvio: de que filmes não são a vida – são algo maior, o cinema.

O crescente sucesso das aparições de Kelly – sempre escudado por Donen – tornou inevitável que a MGM bancasse um filme dirigido pelos dois. Pois, com a provecta idade de 25 anos – a mesma de Orson Welles ao fazer Cidadão Kane (1941) –, Stanley Donen estreou com o filme que consolidaria a parceria, e que seria também um dos pontos altos desse gênero em toda a história: Um Dia em Nova York (1949). Com Gene Kelly, Frank Sinatra e Jules Munshin à frente, parceiras como Vera-Ellen e a extraordinária Ann Miller, músicas de Leonard Bernstein e da dupla Comden-Green, a produção modernizou a fórmula de Astaire, trazendo-a para a atualidade nova-iorquina, com sua história de três marujos que vivem one-night-affairs com moças independentes e senhoras de si (coisa não tão comum na época), antes de embarcar para o próximo destino. Números como a eufórica abertura (“New York, New York”) – filmada em locação por exigência de Kelly e Donen, numa época em que isso era extremamente caro e trabalhoso –, a charmosíssima “You’re Awful”, com Sinatra e Betty Garrett, o atlético “On the Town”, no alto do prédio, capitaneado por Ann Miller, ou o grande balé de Kelly (“A Day in New York”, com a estupenda e pouco conhecida Carol Chaney) são básicos em qualquer antologia do gênero. O filme foi um grande sucesso e colocou a dupla definitivamente no jogo – na verdade, já não era sem tempo.

À luz de tanto sucesso e da colaboração tão próxima entre os dois, Donen e Kelly deviam parecer irmãos para as pessoas fora da divisão musical da MGM. A verdade estava um pouco distante disso.  Gene Kelly era, sem dúvida, um gênio como dançarino, um ator talentoso e um homem que exalava charme e amabilidade, mas, fora do círculo mais íntimo, era visto como um perfeccionista tirânico, dado a descompor os colegas ao menor vacilo, e a querer sempre se provar superior, mesmo num reles jogo de damas – atitude que, por tabela, se estendia aos parceiros mais próximos, como Stanley Donen e Carol Chaney. Nos filmes que fizeram juntos, o crédito de direção vinha sempre com o nome de Kelly primeiro, mas engana-se quem pensa que o astro comandava as operações e Donen era apenas um assistente. Na verdade, Donen cuidava da dança e das questões do set por igual, deixando Gene à vontade para burilar seus números e se superar neles. Foi certamente uma parceria maravilhosa enquanto durou – mas, nas poucas vezes em que falou do assunto, Stanley foi enfático: “Paguei dez vezes o que devia a Gene”.

A prova definitiva de que Donen tinha vida própria além da parceria com Kelly seria o seu sucesso em outros musicais sem o mentor e em outros gêneros, incluindo o suspense. O primeiro voo fora do ninho seria ao lado de ninguém menos que Fred Astaire, o homem que o encantara para a vida artística, com sua estreia arrasadora em Voando para o Rio (1933). Sem esconder o deslumbramento diante do mestre, ele foi um dos responsáveis por sua volta ao time A dos musicais com Núpcias Reais (1951), onde criou a sensacional sequência em que Astaire dança no teto. Numa época em que os seus grandes momentos na RKO pareciam definitivamente superados por Kelly, o gênio maior da dança mostrou que ainda dominava o jogo – e seu único rival possível, Gene, concordava com isso. Mas a maior contribuição de Donen ao gênero, mais do que Um Dia em Nova York, mais do que as sequências inovadoras, mais do que as grandes parcerias com Astaire, tem de ser Cantando na Chuva (1952).

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Curiosamente, o maior musical do cinema foi recebido mornamente em sua estreia, apesar da boa bilheteria. Os críticos que davam alguma atenção ao gênero estavam muito mais encantados com Sinfonia de Paris, do ano anterior, que trazia um emocionante balé de dezessete minutos no final, além de ostentar luxuosas canções de George e Ira Gershwin e ser ambientado na Cidade-Luz, o que lhe emprestava uma aura mais inteligente e ambiciosa do que a média do gênero. Quando o filme foi indicado para fenomenais oito Oscars, um recorde para os musicais, a MGM deu-se até ao desplante de retirar Cantando na Chuva da sua cadeia de cinemas, a fim de reexibir Sinfonia de Paris. O filme de Vincente Minnelli (com Kelly) certamente é grande, uma maravilha, mas passados mais de 60 anos, tornou-se impossível discutir com Cantando na Chuva.

Ali estão, simplesmente, os pontos mais altos do gênero num único filme: do início ao fim, uma profusão de canções que resistem ao tempo (“All I Do is Dream of You”, “You Were Meant for Me”, “Temptation”, infelizmente apenas como música de fundo), coreografias deslumbrantes (a selvagem, incrível, “Make ‘em Laugh”, um tour de force para o fenomenal e subestimado Donald O’Connor; os sapateados “Fit as a Fiddle” e “Moses Supposes” e, claro, o balé “Broadway Melody”, com a inesquecível Cyd Charisse), personagens icônicos (Jean Hagen como a estridente Lina Lamont, com sua hilária voz de taquara rachada) e aquele que é o número mais querido e admirado dos musicais, onde o apaixonado Don Lockwood de Kelly canta e  dança debaixo da chuva.

Diante de tamanho deslumbre, é incrível constatar que, excetuando-se mais uns poucos grandes musicais, o gênero como um todo, com sua longa lista de intérpretes, criadores e técnicos especializados, estaria ferido de morte em apenas cinco anos. Kelly foi para a Europa para resguardar a esposa, a atriz Betsy Blair, célebre militante de esquerda, da “caça às bruxas” do senador Joseph McCarthy. Leis antimonopólio obrigaram os grandes estúdios a se desfazer de suas redes de cinema, obrigando-os a se reorganizar para não falir (faliram do mesmo jeito na década seguinte), e a primeira vítima do enxugamento foram os musicais, com suas equipes enormes e caras. E Donen, que criou alguns dos poucos momentos de glória do gênero pós-1952, como Sete Esposas para Sete Irmãos (1954), Cinderela em Paris (1957), onde uniu Astaire e Audrey Hepburn, Um Pijama para Dois (1957), com a sempre grande Doris Day, e O Parceiro de Satanás (1958), brigou de vez com Kelly durante a produção de Dançando nas Nuvens (1955), uma continuação, em termos, de Um Dia em Nova York, mas já triste e cínica demais para manter viva a velha magia.

Porém, Donen, com a elegância e o tino que já havia demonstrado sem Kelly, ainda foi capaz de produzir alguns dos seus melhores filmes enquanto a mentalidade da Hollywood clássica, pré-Coppola, Spielberg e congêneres, continuava a predominar na indústria. Entenda-se por isso uma Hollywood mais teatral, de diálogos repletos de wit, voltada principalmente para dilemas românticos, onde até os crimes são executados com delicadeza, sem a crueza e a moralidade difusa da geração do Vietnã.

Alguns desses são a comédia Indiscreta (1958), com Ingrid Bergman e Cary Grant, e os suspenses Charada (1964) e Arabesque (1966), todos finos exemplares de um diretor consciente e maduro, no auge de seus poderes. Mas o filme definitivo dessa época, a obra que merece a imortalidade junto com Um Dia em Nova York e Cantando na Chuva, tem de ser Um Caminho para Dois. Com seu tom melancólico, outonal, de humor leve mas amargo em suas idas e vindas, o filme narra a história do relacionamento entre Jo (Audrey Hepburn, musa de longa data do diretor) e Mark Wallace (Albert Finney, no auge da beleza), do encanto inicial às desilusões e ressentimentos. Com uma estrutura inovadora, de idas e vindas, diálogos e atuações maravilhosas, mais a música-tema de Henry Mancini (“Two for the Road”, que o próprio compositor considerava a sua melhor), Caminho é um dos filmes supremos sobre os relacionamentos românticos no cinema. Seu texto maduro e sua sensibilidade tiveram eco em pouquíssimas obras posteriores, sendo a melhor de todas a trilogia Antes do Amanhecer, de Richard Linklater, a partir de 1995. Especial, como se vê.

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De 1967 para cá, Stanley Donen não fez mais nada realmente digno de nota. Mesmo a comédia Bedazzled (1967), com Raquel Welch, apesar de trazer muito da velha classe, não chega a ser um grande filme. A mudança no jogo – estávamos em plena era “New Hollywood”, em que os musicais eram de Bob Fosse e as comédias de Woody Allen – fez de Donen, com quarenta e poucos anos, subitamente envelhecido. Seus poucos projetos desde então fracassaram junto à crítica e à bilheteria, algumas vezes de forma desastrosa, como na adaptação, em forma de musical, de O Pequeno Príncipe, em 1974, que deu um baita prejuízo. Alguns dos filmes que não chegaram a ser feitos surpreendem pelo inusitado – Donen foi cotado para dirigir A Hora da Zona Morta (1983), que projetaria David Cronenberg; ou uma adaptação de O Médico e o Monstro, em 1993, estrelada por… Michael Jackson. Donen também se aventurou no videoclipe, criando “Dancing on the Ceiling” para Lionel Ritchie, que homenageia o seu Núpcias Reais.

Seu último trabalho no cinema é a comédia romântica Feitiço do Rio (1984), ambientada na capital carioca, com Michael Caine, Demi Moore e José Lewgoy. Passou em brancas nuvens junto ao público e foi massacrado pela crítica, mas Donen não se abala. À sua maneira de sempre – culto, elegante, tenaz – ele continua atrás de um novo filme ao qual possa emprestar a magia e o incrível bom gosto de suas colaborações com Kelly, Astaire, Hepburn. Casado com a comediante, teatróloga e roteirista Elaine May, dando palestras sobre cinema em prestigiadas escolas americanas e comovendo em suas aparições públicas – como quando recebeu o Oscar honorário em 1998, o ano de Titanic, e encantou ao dançar com a estatueta e cantar “Cheek to Cheek”, clássico de seu ídolo Astaire –, o homem quer provar que a beleza, a suavidade e a imaginação dos grandes musicais ainda têm serventia para os nossos tempos.

Gostaria que mais gente além de mim concordasse.