O nome Stoker imediatamente remete a Bram Stoker, autor irlandês que escreveu Drácula e praticamente inventou o que hoje consideramos a mitologia do vampirismo. Stoker: Segredos de Sangue não é um filme de vampiro no sentido verdadeiro do termo, mas apresenta um vampirismo metafórico, no qual a personagem principal dá vazão à sua psicopatia latente após conhecer um misterioso estranho que lhe apresenta ao sangue… A inovação, neste caso, é de que se trata de uma psicopata feminina.

Na trama, India Stoker (vivida por Mia Wasikowska) é uma adolescente retraída que adora seu pai (Dermot Mulroney) e não parece ter muito apreço pela sua mãe, Evie (Nicole Kidman). Seu pai morre num acidente e então surge em sua vida um tio do qual ela nunca ouviu falar. Tio Charlie (Matthew Goode) é irmão do seu pai, um tipo boa pinta que pouco a pouco se torna uma presença dominante nas vidas de India e da sua mãe. Charlie, no entanto, guarda alguns segredos…

O roteiro de Stoker é de autoria do ator Wentworth Miller, hoje em dia mais lembrado como o protagonista da série Prison Break. Também representa a estreia hollywoodiana do cineasta sul-coreano Park Chan-Wook, o talentoso diretor da trilogia da vingança – Mr. Vingança (2002), Oldboy (2003) e Lady Vingança (2005). Stoker não chega a ter a violência perturbadora que o publico já aprendeu a esperar do cineasta (embora tenha sim alguns momentos fortes), mas apenas a criatividade visual de Park Chan-Wook já basta para diferenciar o longa da maioria das produções de Hollywood.

Park cria um complexo e interessante sistema de imagens para transmitir (às vezes quase subliminarmente) os conceitos por trás da história de India. É uma história de libertação feminina, e o diretor ilustra isso visualmente, através de vários elementos, notadamente na criativa direção de arte de Therese DePrez. As cores usadas nos ambientes são usadas para comunicar as emoções reprimidas dos personagens (na gótica casa dos Stoker há ambientações verdes, vermelhas e uma longa cortina cinza-escura ao redor da sala de jantar). Há também objetos estranhos – uma cadeira com encosto gigantesco para evocar a proteção exagerada de Evie sobre a filha, ou uma cama no jardim que evoca a imagem de um casulo, afinal Stoker é sobre a transformação de India de lagarta para borboleta.

E falando na natureza, há várias imagens de pássaros no filme (caçados por India e seu pai) e ovos (a cama do jardim também pode parecer com um ninho). Outros símbolos do filme evocam o despertar da feminilidade de India após a chegada de Charlie: uma aranha lhe subindo pelas pernas, um lápis com a ponta ensanguentada que aparece em dado momento… No entanto, Park não martela esses simbolismos na cabeça do espectador e consegue apresentá-los de forma sutil.

Além disso, a inventividade visual de Park Chan-Wook continua tão poderosa quanto nos seus trabalhos no cinema oriental. Em praticamente todas as tomadas há algo interessante acontecendo, seja um movimento de câmera, os já mencionados simbolismos, ou as belas transições criadas pelo cineasta – a mais bela de todas vai dos cabelos escovados de Nicole Kidman para os campos de uma plantação.

Apesar de ter ido filmar nos Estados Unidos pela primeira vez, Park Chan-Wook não faz muito uso de imagens iconográficas americanas. Embora a história claramente se encaixe na tradição gótica do sul dos Estados Unidos, Park prefere fazer dela algo mais universal, investindo mais na imagem cuidadosamente elaborada e menos nas paisagens. Há várias referências a Alfred Hitchcock em Stoker, a mais óbvia de todas sendo, claro, o personagem Tio Charlie que imediatamente remete a A Sombra de uma Dúvida (1943), o preferido de Hitch dentre todos os seus trabalhos. Mesmo assim, o longa não fica saturado dessas referências, e se torna mais interessante principalmente pela forma como é narrado – outros cineastas, americanos especialmente, mais afeitos ao naturalismo, provavelmente não contariam essa história com tanto estilo quanto Park.

Mas Stoker não é apenas estilo, pois Park não perde vista a história e escolheu ótimos atores para dar vida a ela. Apesar de Nicole Kidman e da veterana Jacki Weaver estarem bem, o filme pertence mesmo à Mia Wasikowska e Matthew Goode. Ele é frio e charmoso, e o ator transmite algo errado em Charlie desde o início. E pela primeira vez um cineasta usa a natureza plácida de Mia para sugerir uma verdadeira perturbação interior, tornando Stoker num interessante estudo sobre a formação de uma assassina. As sementes da psicopatia sempre estiveram lá, como é mostrado no filme, mas as mudanças da adolescência, a descoberta da própria sexualidade e a “predisposição” familiar fazem com que India definitivamente “abra as asas”.

No fim das contas Stoker é sobre uma menina virando mulher após provar o sangue (olha aí o simbolismo de novo). Essa transformação não é vista como ruim por Park Chan-Wook, pelo contrário – conhecer a si mesmo equivale a libertar-se na visão do diretor. Mais um exemplo da visão incomum desse cineasta, que transforma o que poderia ser apenas mais um thriller num belo e assustador sonho.

Nota: 8,5