Leitor, você se lembra do final da primeira temporada de Mad Men? Don Draper fazia uma apresentação de uma campanha para um novo produto da Kodak, um projetor com carregador circular para a exibição de slides e fotos, e o abastecia com fotos da sua própria família, todos aparecendo felizes e perfeitos nas imagens. Ele então se emocionava – porque sabia que a felicidade nas fotos era ilusória – e falava sobre a nostalgia, e como a palavra significa literalmente “a dor de uma ferida antiga”. Foi uma das cenas mais belas e poderosas da série, e terminava com Draper chamando o novo projetor de “carrossel”.

O monólogo do Don Draper é inesquecível para quem o assistiu, em parte porque vivemos no carrossel da celebração da nostalgia, especialmente pela década de 1980. Claro, há razões econômicas para isso: afinal, as pessoas que cresceram naquela época hoje têm seus próprios filhos e representam o maior público consumidor de vários mercados, incluindo o do entretenimento. E esse pessoal gosta e tem carinho pelos produtos culturais que os divertiam na juventude, mesmo que guardem deles apenas vagas lembranças. No tocante ao cinema, isso ajuda a explicar porque ano passado vimos nas telas os retornos do Mad Max, do Rocky Balboa, do Exterminador do Futuro e da galáxia muito, muito distante de Star Wars; e porque a celebração de 30 anos de De Volta para o Futuro chamou mais atenção do que o novo filme que seu criador, o cineasta Robert Zemeckis, lançou, o belo A Travessia (2015). E esse ano já vimos Caça-Fantasmas

Mas a maior celebração da década de 1980 vista em tempos recentes é mesmo a série Stranger Things. Ela é ambientada em 1983, a fonte dos créditos de abertura remete às capas dos velhos livros de Stephen King, a trilha sonora eletrônica é claramente inspirada por John Carpenter – assim como algumas cenas mais assustadoras – e os personagens principais são um grupo de crianças comuns envolvidas num mistério de ficção-científica, no mesmo estilo daqueles vistos nos velhos filmes produzidos ou dirigidos por Steven Spielberg. Junte aí também umas pitadas de Os Goonies (1985), outras de Conta Comigo (1986), e um leve sopro de John Hughes. Até a fotografia da série, de vez em quando, deixa transparecer um pouco de granulação, como se tivesse sido rodada em película velha – e não foi. De fato, os únicos elementos capazes de sinalizar que Stranger Things não é uma produção esquecida dos anos 1980, só agora descoberta, são os ocasionais efeitos em computação gráfica (alguns, não muito bem sucedidos) e o fato de ela ser veiculada via Netflix.

O interesse dos criadores da série, os irmãos Matt e Ross Duffer, junto com o cineasta Shawn Levy – aquele mesmo dos filmes Uma Noite no Museu – é o de recriar por completo aquelas experiências que lhes despertavam a imaginação quando crianças. Assim, a história começa num laboratório sombrio, quando presenciamos uma “coisa” escapar ao controle de alguns cientistas – sempre eles, mexendo com o que não compreendem… Essa coisa mais tarde provocará o desaparecimento do garotinho Will Byers (Noah Schnapp).

Enquanto sua mãe Joyce (Winona Ryder) e o xerife da cidade, Jim Hopper (David Harbour), começam a procurar por Will, outros eventos estranhos fazem com que seus amigos, liderados por Mike (Finn Wolfhard), iniciem sua própria busca, inspirados por rodadas de Dungeons & Dragons e filmes de terror e ficção-científica.

Quem vai ajudá-los nessa busca é a estranha garotinha conhecida apenas como Onze (Millie Bobby Brown). De cabeça raspada e aparência estranha, ela será o “E.T.” de Mike, e a série não se envergonha de mostrar uma (ótima) cena dos garotos sendo perseguidos por furgões do governo, enquanto fogem em suas bicicletas. Porém, o que poderia ser apenas um mero exercício de “apropriação artística” se torna algo maior porque os irmãos Duffer conseguem criar personagens com os quais o público se importa, interpretados por atores que elevam o material. Especialmente as crianças, que representam um dos exemplos de casting infantil mais inspirados dos últimos tempos. Wolfhard é absolutamente sólido, e Caleb McLaughlin e Gaten Matarazzo – este último, irresistível – são divertidíssimos e vivem personagens bem delimitados. E a maior revelação do projeto termina sendo mesmo a impressionante Millie, que com seus olhos e rosto expressa as emoções que sua personagem não consegue dizer.

O elenco é soberbo: Ryder demora um pouco para encontrar sua personagem, mas quando o faz a transforma numa parente do herói de Richard Dreyfuss em Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) de Spielberg; e o eterno character actor Harbour tem mais um bom momento na carreira como Hopper. Até os personagens jovens convencem, mesmo envolvidos num romance clichê, graças aos bons desempenhos de Charlie Heaton e Natalia Dyer – esta última pode ter sido contratada por lembrar um pouco a Mia Sara, namorada do Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado (1986). Será? Não duvido… Mas são as crianças quem roubam o show, e provavelmente ouviremos falar mais delas no futuro, assim como dos irmãos Duffer.

E o outro elemento que eleva a série um pouco além da mera nostalgia é o senso realmente honesto de diversão. Stranger Things nunca deixa cair o ritmo e vai ficando cada vez mais envolvente – mais uma produção da Netflix que estimula o público a passar horas na frente da TV. De fato, essa diversão até faz com que o espectador perdoe alguns problemas, como o fato dos vilões serem completamente genéricos – o máximo que se pode dizer do cientista vivido por Matthew Modine, outro nome dos anos 1980, é que ele tem uma impressionante cabeleira branca – e a previsibilidade de alguns desdobramentos da trama. E os roteiristas trabalham de forma sutil temas mais sérios dentro da fantasia: há pelo menos duas versões diferentes de despertar sexual dentro da história, e os medos infantis e adultos impulsionam a narrativa.

É impossível não lembrar também de Super 8 (2011), o filme de J. J. Abrams bem parecido com a série, mas que por causa de alguns problemas não alcançava todo o seu potencial. Tanto o filme quanto Stranger Things usam a nostalgia quase como questão de honra, mas a série funciona melhor. Sim, os Duffer são apaixonados pelos anos 1980 e pela época em que as coisas pareciam mais simples – só pareciam. As referências – Poltergeist (1982) é mencionado explicitamente – e os pôsters espalhados nos cenários – de Tubarão (1975), A Morte do Demônio (1981) e O Enigma de Outro Mundo (1982) – expõem seu amor pelos filmes da sua juventude. A série é nostálgica mesmo e não tem vergonha disso, mas seus criadores são perceptivos o bastante para reconhecer que estamos todos presos naquele carrossel do Don Draper. Afinal, seus três grupos de personagens, os adultos, os jovens e as crianças, aos poucos convergem e se unem para resolver o mistério sobrenatural da série.

Essa visão a torna literalmente uma série para todas as idades e capaz de, em alguns momentos, despertar novamente aquele entusiasmo infantil pelo medo do bicho embaixo da cama e pela crença de que o fantástico é possível. Quando a viagem é tão divertida quanto em Stranger Things, não nos incomodamos de dar uma volta no carrossel.