É curioso observar como Clint Eastwood, um ator-diretor que se celebrizou por viver figuras maiores que a vida, badasses definitivos do cinema – como o Homem sem Nome da trilogia de Sergio Leone e o brutal justiceiro “Dirty” Harry Callahan –, tem se voltado para o escrutínio de pessoas em situações de heroísmo, seja para exaltá-las (como o presidente africano Nelson Mandela, em Invictus, ou o cantor ítalo-americano Frankie Valli, em Jersey Boys), seja para revelar suas contradições (como o fundador do FBI, J. Edgar Hoover, em J. Edgar), ou ainda, em seu melhor trabalho recente, Sniper Americano (2014), combinando os dois.

Este Sully: O Herói do Rio Hudson joga no primeiro time, mas vai além: trata-se do filme mais celebratório de Eastwood, eternizando no cinema o mito de Chesley “Sully” Sullenberger, o experiente piloto americano que, em 15 de janeiro de 2009, realizou um feito espantoso: pousou em segurança um avião comercial com 155 passageiros no rio Hudson, em Nova York, após perder os dois motores da aeronave devido a uma colisão com pássaros. O episódio, que ficou conhecido como o “milagre do Hudson”, jogou Sully e seu copiloto, Jeffrey Skiles, num turbilhão de celebridade instantânea, mas também levantou uma questão problemática: a dramática aterrissagem no rio teria mesmo sido a única saída possível para Sully e seus passageiros?

O filme coloca a questão quase como num western clássico, onde Sully (vivido com a excelência de sempre por Tom Hanks) e Skiles (numa boa oportunidade para Aaron Eckhart, de Obrigado por Fumar, que anda merecendo mais papéis à sua altura) se preparam para enfrentar o boçal, intimidador Conselho de Segurança de Transportes Nacionais (NTSB, na sigla em inglês), que, movido por pressão da seguradora, tenta acusar o capitão e sua equipe de irresponsabilidade. Temos, então, um herói na acepção do termo, sem arestas, justo e decente, preocupado apenas em realizar seu trabalho, e um retrato antipático da investigação governamental, onde burocratas a serviço do dinheiro tentam negligenciar o feito extraordinário de Sully e mitigar sua grande paixão, que é voar. E quer saber? Funciona que é uma beleza.

Embora o embate maniqueísta entre Sully e o Conselho pareça pouco convincente em seu desfecho (a apresentação de uma prova muda, num único lance, a postura que os membros do comitê vinham apresentando durante todo o filme), o roteiro habilidoso de Todd Komarnicki e a direção sempre exata de Eastwood transcendem o feel-good movie previsível, criando um retrato humanizado e cheio de suspense de um episódio que, sob qualquer aspecto, já seria incrível. O uso da CGI é exemplar, apenas o bastante para pontuar lances cruciais na queda do avião, mas que cria mais tensão e nós na garganta do que toda a orgia de cores e efeitos de Doutor Estranho. Você pode argumentar que os passageiros do voo são caricaturas sentimentalizadas, com o índice de pessoas felizes e bondosas mais alto que você já viu num avião, e ainda assim funciona: na hora da verdade, todas se revelam tão impotentes e apavoradas quanto qualquer um de nós. O dom de Eastwood para a escolha do elenco ajuda a rechear as cenas de pequenos detalhes satisfatórios, como as diferentes posturas das aeromoças, ou a reação dos passageiros à informação de que o avião vai cair.

A dinâmica entre Hanks e Eckhart também funciona muito bem, ressaltando o lado corriqueiro dos dois, ao invés de enfatizar o heroísmo. Hanks, por sinal, continua uma das únicas certezas do cinema americano: o que quer que ele faça, sabemos que vai ser da melhor forma que ele puder, e que o papel exigir.

Então, sim, é mesmo um feel-good movie, a criação assumida de um mito, um americano comum que, à força das circunstâncias, acabou desempenhando um feito inédito na história da aviação comercial – e, no processo, salvando a vida de 154 pessoas sob seu comando. Como Ponte de Espiões (2015), de Steven Spielberg, outro filme sobre um americano comum lançado ao heroísmo por apenas querer fazer seu trabalho, pode parecer uma obra reacionária, simplista, o endosso da América média, “de família”, que acredita na grandeza de seu país e elegeu Donald Trump como o homem para tirar o navio da borrasca. Ou então você pode pensar nele como o A Felicidade Não se Compra desse ano, um filme positivo, sobre como pessoas comuns, com consciência e empatia, podem fazer a diferença numa hora crítica, e sair do cinema com uma sensação agradável. Sully não tem a grandeza de um Capitão Phillips (2013), claro. Mas, à sua maneira bem mais modesta e descomplicada, também é uma experiência envolvente, e que vale a conferida.