Logo no início de Tatuagem vemos o real protagonista da história, o jovem Arlindo (interpretado por Jesuíta Barbosa), “enquadrado”. Ele está no quartel, sentado na cama, e o ângulo da câmera o enquadra por entre as barras dos beliches, dando a impressão inicial de que ele está numa cela de cadeia. Arlindo realmente está preso no começo da história, mas no decorrer dela irá se libertar.

Estamos em Pernambuco no final dos anos 1970, época na qual persistia a repressão militar no Brasil. Arlindo é apelidado de “Fininha” por seus colegas recrutas por ser diferente, e é mesmo: ele é homossexual, mas disfarça sua orientação ao ter um relacionamento com uma garota. Durante uma viagem à Recife, Fininha conhece a trupe do cabaré “Chão de Estrelas”, liderado por Clécio Wanderley (Irandhir Santos). Clécio tem um relacionamento com o travesti Paulete (Rodrigo Garcia), mas logo o troca pelo jovem recém-chegado. A trupe apresenta um espetáculo teatral debochado e provocador, e por isso entram em conflito com as autoridades e a “moral e os bons costumes” da sociedade.

Dirigido por Heitor Lacerda, Tatuagem é mais um exemplar do atual e vibrante cinema pernambucano. Sem medo de explorar o tema da homossexualidade, Lacerda faz do filme uma experiência visceral e com momentos ousados de nudez e sexo entre dois homens. O filme é uma exploração franca da homossexualidade, relacionando-a com a busca por liberdade num dos períodos históricos mais negros da história brasileira.

É um filme de planos longos, nos quais o diretor dá liberdade aos seus atores e deixa a sua câmera acompanhar as situações. Para situar ainda mais o público no contexto histórico do fim dos anos 1970, Lacerda também faz uso de filmagens em Super-8 dos projetos teatrais da trupe. Enquanto poesias são recitadas, as imagens desses momentos imediatamente remetem a Glauber Rocha – que, não por acaso, é mencionado por Clécio durante um dos seus shows.

A ousadia e liberdade da história se estendem às performances dos atores. Este é um daqueles casos nos quais ninguém parece estar atuando: os atores simplesmente são. No entanto, os destaques óbvios do elenco são Jesuíta Barbosa e Irandhir Santos. Ambos se entregam sem reservas aos seus papeis, e o segundo também brilha nos números musicais – o ator imita Maria Bethânia e depois conduz o número com a trupe inteira nua, e esses dois momentos são suficientes para colocar Irandhir Santos entre os melhores intérpretes do cinema nacional na atualidade.

A determinação do personagem dele em manter o tom provocador das apresentações do “Chão de Estrelas” é algo que não pode sobreviver em meio àquele contexto repressivo. Não é à toa que grande parte do filme se passa em ambientes pouco iluminados: o quartel, o cabaré, até o apartamento de Clécio na cena da primeira vez em que ele e Fininha transam… O comportamento dos personagens do filme era relegado às sombras. No entanto, eles anseiam por liberdade e por se mostrar sem receios, e isso explica o título do filme – um momento tornado ainda mais especial pelas brilhantes atuações de Barbosa e Santos e que merece ser descoberto por cada espectador.

Apesar de toda a repressão, alguma coisa sobrevive – é o que parecem indicar as cenas finais de Tatuagem, um filme ousado e poderoso sobre um grupo de pessoas que ousou ser livres justamente quando não havia liberdade. Como seus personagens, o filme também é livre, trazendo para a superfície (ou para a “flor da pele”, para estar de acordo com o título) algo que ainda hoje muitos querem deixar escondido.

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