No início de “The Breadwinner”, a protagonista ouve de seu pai que “as histórias continuam no nosso coração mesmo quando todo o resto foi embora”. Essa frase é a essência desta sensível animação que concorreu ao Oscar 2018. O filme é uma história sobre juventude roubada em meio a uma sociedade regida pelo Talibã.

Baseado em um livro de mesmo nome, “The Breadwinner” tem como protagonista a já citada Parvana, uma garota que resolve cortar o cabelo e fingir ser um menino para conseguir sustentar a família após o pai ser preso. A proposta não é original – de Shakespeare a Barbra Streisand e seu “Yentl”, a arte já usou desse recurso para pontuar o sexismo de diversas maneira.

O que dá o diferencial a “The Breadwinner” é o pano de fundo no qual a história se passa. No caso, o regime extremista do Afeganistão, tão malfadado principalmente pós-11 de setembro, quando os Estados Unidos resolveram convencer todo mundo de que o Islã era a face de tudo o que havia de errado com o mundo.

É até desleal que os personagens apareçam falando em inglês (com sotaque, mas em inglês), mas vale lembrar que o filme é uma produção do estúdio canadense Cartoon Saloon e usa atores canadenses, mas de origem islâmica.

Por outro lado, a animação tem a chancela da atriz Angelina Jolie, sempre tão preocupada em mostrar além do que se vê em regiões pouco exploradas no cinema mainstream – veja seus filmes com atores da antiga Iugoslávia (‘Na Terra de Amor e Ódio’) e cambojanos (‘Primeiro, Mataram o Meu Pai’). Não estamos falando de um país fictício em uma superprodução da Marvel, como a Wakanda do maravilhoso “Pantera Negra”, ou de uma pasteurização made in Pixar (‘Coco’, que, sim, é um belo filme) e sim de uma situação real, que envolve e afeta pessoas de uma área tão discriminada no Ocidente.

Mas, problematização à parte, quando o assunto é a narrativa, “The Breadwinner” conta sua história de forma eficiente. Pelos olhos de Parvana, o espectador vive o medo de ser desmascarado, a euforia de descobrir uma forma de encontrar o pai, o alento de uma mão amiga quando menos se espera e o desespero de perceber a impotência da mãe perante um grupo mais forte que ela.

Ao mesmo tempo, o filme acerta em incursões de histórias lúdicas que conversam com a trama principal e acabam sendo, por vezes, mais enfáticas em mostrar o relacionamento de Parvana com o pai (e a principal ligação entre eles, que é esse conjunto de histórias). A animação é bonita e usa de cores fortes para mostrar o escapismo necessário que aqueles contos paralelos representam, e um misé-èn-scéne que sempre pontua o quão Parvana é pequena perante aquele mundo real quase monocromático.

No fim das contas, “The Breadwinner” é um filme denso, que não se furta de mostrar violência e ameaça que vai além das sombras. Ao mesmo tempo, traz a leveza da imaginação que tanto ajuda Parvana (e seu pai) a sobreviver. É um conto necessário nos dias de hoje, que mostra a força da sororidade (seja entre Parvana e sua mãe, ou entre a protagonista e uma amiga que também se veste de homem) em uma sociedade onde as mulheres não têm voz.