Entra ano, sai ano, e um novo filme da Marvel se tornou algo tão esperado e rotineiro quanto o Natal ou a Festa Junina. Os próprios filmes do estúdio se tornaram previsíveis, à prova de controvérsias, ou de algum lampejo redentor de criatividade. Não sei quanto a vocês, mas desde Guardiões da Galáxia (2014) que os filmes da Marvel não me empolgam: todos têm heróis carismáticos, ótimo elenco, efeitos que vão do competente ao deslumbrante – e todos me parecem igualmente calculados, formulaicos, desinspirados, enfim.

Toda essa ranzinzice foi para dizer que, pela primeira vez em algum tempo, consigo recomendar com entusiasmo um filme do estúdio. Thor: Ragnarok, terceira incursão solo do Deus do Trovão na telona, é não só o filme mais divertido, colorido e animado da Marvel desde Guardiões, como também uma bem-vinda oxigenada na atmosfera pomposa e megalomaníaca dos filmes recentes de super-herói.

Obra da “Fase 3” do universo Marvel no cinema – para quem não sabe, o estúdio arma seus filmes como uma série de histórias paralelas, que vão se alimentando umas às outras a cada nova “Fase” –, Ragnarok é ambientado dois anos após os eventos de Vingadores: A Era de Ultron (2015). Nesse meio-tempo, conforme o próprio Thor (Chris Hemsworth) explica no prólogo, o herói de Asgard andou perseguindo, sem sucesso, as Joias do Infinito, artefatos ancestrais e poderosíssimos que, em mãos erradas, podem resultar na subjugação do universo inteiro. Aproveitando a deixa, o irmão de Thor, Loki (Tom Hiddleston), lançou o pai de ambos, Odin (Anthony Hopkins), em exílio na Terra, e tomou o controle de Asgard, libertando sem saber um perigo muito maior do que ele mesmo: Hela (Cate Blanchett), Deusa da Morte e irmã mais velha de Thor e Loki, louca para ter Asgard a seus pés.

Mais do que o tom mais leve adotado pelo estúdio em seus últimos filmes (os efeitos de Deadpool ainda se fazem sentir), ou a opção por uma atmosfera colorida, vibrante, assumidamente oitentista deste novo Thor, é o elenco, talvez o melhor já arregimentado para um filme Marvel, que faz de Ragnarok uma sucessão de delícias. Hemsworth é convincente na comédia, na ironia e no drama, e seu carisma transbordante o eleva muito acima dos cacoetes de Robert Downey Jr., ainda o nome mais celebrado da Marvel. Hiddleston, como Loki, é de longe o melhor vilão criado pelo estúdio – e continua a ser a principal razão para se ver qualquer filme Thor, ou qualquer filme Marvel em que ele apareça.

A ideia inspirada de incluir Hulk na trama – ele é escada para várias boas cenas de humor do filme – permite agregar o sempre impecável Mark Ruffalo à festa. Blanchett, como Hela, parece estar se divertindo como poucas vezes em sua carreira – seu olhar de megera deveria virar meme desde já. E a novata Tessa Thompson, da série Westworld, se impõe como a durona, hard-boiled, Valquíria. Curiosamente, o “convidado” mais festejado pela crítica internacional, um renascido Jeff Goldfblum (de Jurassic Park: Parque dos Dinossauros), me deixou frio: afetado demais, e com piadas que passam do ponto, ele é o elo fraco no genuíno desfile de alegorias que é Thor: Ragnarok.

Ainda nesse espírito de brincadeira, os cinéfilos devem ficar curiosos em tentar desvendar cada uma das pontas do filme: um esquete de teatro logo no começo, por exemplo, traz Matt Damon, Luke Hemsworth (irmão de Chris e também integrante de Westworld) e Sam Neill (outro jurássico de Spielberg), todos fortemente caracterizados.

Tal como um baile de carnaval, o novo Thor é um filme para ser petiscado, entornado, dançado e pulado, e não para ser levado a sério. Embora os momentos de drama e perigo existam, o filme é primeiro e antes de tudo uma brincadeira agitada, febril, com um espírito de matinê que vários outros filmes Marvel tangenciaram – Capitão América: O Primeiro Vingador (2010) foi o que chegou mais perto, embora em outra chave, mais aventureira –, mas nenhum alcançou com o mesmo frescor e despretensão.

Sem se afastar da consagrada – e já cansada – “fórmula Marvel”, Thor: Ragnarok é uma resposta à altura à desconstrução proposta por Deadpool, com um espírito que lhe é próprio, menos sacana, mas igualmente leve e satisfatório.