Uma das imagens assinaturas de Trama Fantasma é aquela que mostra um estilista de moda ajoelhado, ajustando o vestido no corpo da modelo, que está de pé na sua frente. São duas pessoas presentes nessa imagem aparentemente inócua, mas onde há ao menos duas pessoas envolvidas, há potencial para todo um universo de sentimentos e problemas. Essa parece ser a ideia por trás de praticamente toda a filmografia do cineasta Paul Thomas Anderson. Seja tecendo a teia de relacionamentos de Magnólia (1999); examinando a relação de dependência que se estabelece entre pupilo e guru em O Mestre (2012); mostrando que família que faz filmes pornôs unida, permanece unida, em Boogie Nights (1997); ou fazendo a crônica de um homem que pouco a pouco rompe com o mundo em Sangue Negro (2007), Anderson vem se notabilizando por basear sua obra na observação das complexas relações humanas.

Trama Fantasma não é diferente. No filme, ambientado na Londres dos anos 1950, tudo gira em torno do grande estilista Reynolds Woodcock, vivido por Daniel Day-Lewis. Ele parece viver para o trabalho; sua irmã Cyril (Lesley Manville) cuida da casa, da empresa e de todas as suas necessidades; e ocasionalmente, Woodcock também se envolve em relacionamentos meio ambíguos com suas modelos. Logo no início, uma delas parece estar sendo dispensada da vida dentro da casa Woodcock. Mais à frente, uma das suas clientes, ao provar (e aprovar) o vestido concebido pelo estilista, diz a ele que “valeu a pena tudo pelo que passamos” só para se ver com aquele traje. Ele vive pela sua arte, é caprichoso, dado a mudanças de humor, mas seu comportamento é sempre tolerado, pelo fato duplo de ser homem e gênio.

Um dia ele conhece a garçonete Alma (Vicky Krieps) e o que parece a princípio um romance de cinema – ela até cora quando o vê – evolui para se tornar algo mais complexo e desafiador.  Paul Thomas Anderson, também o roteirista do filme, nos surpreende: quando a história parece ir para um lado, acaba indo para outra direção, mais complexa e interessante. Pois, para Anderson, aparentemente tudo é possível dentro do espectro das relações humanas.

Surpreende também o absoluto domínio do cineasta, ainda mais quando consideramos que Trama Fantasma é completamente diferente do seu trabalho anterior, a comédia neo-noir Vício Inerente (2014). Enquanto Vício era bizarro e maluco, Trama é totalmente controlado. As cenas iniciais, mostrando a vida na casa Woodcock, parecem saídas de um filme de Carol Reed, com a atmosfera britânica calculadamente construída pelo cenário de paredes brancas, pelo figurino sóbrio de Mark Bridges e o piano da trilha sonora de Jonny Greenwood.

Os enquadramentos são meticulosamente construídos e os elementos visuais são precisos: a paleta de cores é fria, o ambiente asséptico da casa reflete a frieza do seu dono, apenas sua irmã destoa da brancura com um figurino predominantemente preto. E há um requinte tipicamente britânico na produção, quase como se PTA se revelasse parente do James Ivory que fez Retorno a Howard’s End (1992) ou Vestígios do Dia (1993).

Mas toda essa classe no uso da câmera – um ou outro momento até lembram Barry Lyndon (1975) de Stanley Kubrick, pela composição e uso da trilha sonora – serve como moldura para uma experiência narrativa meio incômoda, esquisita – embora menos que outros filmes do diretor – e repleta de emoções, sempre mantidas sob a superfície. O aspecto emocional da história é puro PTA: uma cena crucial num jantar entre Alma e Reynolds expõe a carência emocional dela e a relutância cruel dele. Poucos cineastas hoje conseguem criar cenas tão emocionalmente cortantes quanto ele.

E a respeito de Woodcock, como muitos grandes artistas, ele é um menino mimado. Não deixa de ser pertinente a discussão que Trama Fantasma traz dos anos 1950 para o mundo atual, no qual só recentemente se começa a questionar de verdade as posturas de tantos homens em posições de poder e destaque no mundo artístico, e a maneira com que se comportam, especialmente frente a mulheres. Woodcock possui praticamente um pequeno exército de mulheres trabalhando para si, e algumas outras ele seduz ao vesti-las. Literalmente escolhe Alma como quem escolhe um item num balcão, e devido ao seu poder consegue atraí-la para seu meio. E quando ela não se comporta como esperado, é quando o trabalho de Daniel Day-Lewis mais chama a atenção. Numa atuação tão forte quanto sutil, Day-Lewis nos deixa ver o que se passa no interior do seu personagem com um mero tensionar da mandíbula ou uma mudança no rosto, que em alguns momentos se assemelha a uma máscara.

Day-Lewis é tão brilhante e consciente – de novo – que cede com facilidade o espaço para suas coadjuvantes. Lesley Manville é assustadora, quase uma serva em filme de vampiro, fria, mas também estranhamente capaz de afeto; e Krieps cresce durante o filme, retrata bem a transformação sutil da sua personagem e consegue não ser engolida em cena por Day-Lewis. Na verdade, ela é a protagonista de fato e a personagem mais complexa num filme repleto deles, onde nada é o que parece a princípio .

Outra cena que fica na memória é quando Paul Thomas Anderson e seu o montador de sempre, Dylan Tichenor, costuram o jogo de olhares numa cena na cozinha entre Woodcock e Alma, e os subtextos presentes nela. É um exemplo de cineasta e atores tecendo um momento, tal e qual vemos Woodcock fazendo o filme todo. A simbiose entre PTA e Daniel Day-Lewis é algo a se admirar, e se Trama Fantasma não alcança a glória passada de Sangue Negro, bem, não fica muito atrás. Se esta for mesmo a derradeira atuação de Day-Lewis no cinema, ele se despede com um personagem obsessivo  e brilhante no que faz, igual ao ator que vem nos maravilhando há décadas com suas criações.

E de quebra, ator e diretor/roteirista/criador exploram até onde podem a dicotomia da criação artística, cujas realizações tão bonitas muitas vezes vêm acompanhadas de um lado sombrio. E lados sombrios gostam de companhia, às vezes: Na visão de Paul Thomas Anderson, não há ponto sem nó, não há agulha sem linha.