Há quase 25 anos atrás Laura Palmer foi encontrada morta – “enrolada em plástico”, como diz o Pete Martell, que a avistou numa beira de praia numa manhã chuvosa – e nós ainda não a esquecemos. Laura era a força por trás do mistério do seriado Twin Peaks, um dos programas que ajudou a modificar o cenário da TV americana e mundial em 1990, quando estreou.

Se hoje os seriados vivem uma era de ouro, aproximando-se do cinema, é em parte por causa de Twin Peaks. Nomes como David Chase (criador de Família Soprano) e Nic Pizzolatto (roteirista e criador do sucesso recente True Detective) já falaram sobre a influência da série sobre as suas produções. E é impossível ignorar a contribuição da série para outros programas de sucesso como os fantasiosos Arquivo X e Lost, ou policiais como The Killing. E a maior prova de que Twin Peaks permanece viva é o continuo interesse pela série: afinal, um maiores lançamentos de home entertainment do ano foi o box com a série em Blu-ray.

Twin Peaks nasceu por uma conjunção de fatores um pouco inimagináveis no cenário televisivo de hoje. Tudo era muito formulaico. Quase não havia continuidade e a maioria dos seriados se limitava a contar a “história da semana”. A rede ABC estava desesperada por um sucesso, por isso aceitaram produzir a ideia – ainda um pouco vaga – de uma série sobre uma cidade pequena e seus estranhos habitantes, e sobre como essa comunidade é abalada por um crime brutal. Os criadores (ou culpados) foram o produtor e roteirista Mark Frost, que trabalhou na também revolucionária série policial Hill Street Blues, e o cineasta David Lynch.

Enquanto hoje seja comum vermos nomes do cinema por trás de projetos televisivos, no começo dos anos 1990 David Lynch foi pioneiro. Já tinha sido duas vezes indicado ao Oscar, por O Homem Elefante (1980) e Veludo Azul (1986), e junto com Frost elaborou todo o cenário da cidade de Twin Peaks, seus personagens e a estranha mitologia da série. De fato, pode-se até imaginar Twin Peaks como a versão para TV de Veludo Azul. Naquele filme, o jovem Jeffrey descobria todo um submundo escondido nas sombras da sua idílica cidadezinha. Obviamente, por ser TV, Twin Peaks não tinha a violência e os palavrões de Veludo Azul, e as perversões sexuais tinham de ser lidadas com mais sutileza. Mas foi essa própria sutileza que ajudou a fisgar espectadores. Era um seriado sobre assuntos muito sombrios, mas contados com requinte e fazendo uso de clichês, muitos dos quais o publico já estava acostumado – mas revirando-os de ponta-cabeça – e com um estranho e diferente senso de humor.

Twin Peaks começava com o cadáver de Laura Palmer sendo encontrado, mas antes disso o publico via aqueles estranhos e lentos créditos de abertura – eles meio que preparavam o espectador para o clima diferente da série – e a primeira cena, na qual surge Josie Packard (Joan Chen) se olhando no espelho. Ela retoca a maquiagem e é linda, mas veste-se de preto e tem um ar misterioso. Ali, o tema central da série já é sintetizado visualmente: a beleza externa esconde mistérios, possivelmente assustadores, por trás da fachada.

Ainda no episódio-piloto, chega à cidade o agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan, o mesmo ator que fez Jeffrey em Veludo Azul) para investigar o assassinato de Laura. Cooper é um investigador incomum: acredita em sonhos e em filosofias orientais, além de ser tarado por café, rosquinhas e torta. Estranha, engraçada e cativante, a atuação de MacLachlan conquista o publico e o seduz para o mundo do seriado. Ao longo dos episódios a investigação de Cooper, auxiliado pelo xerife local Harry Truman (Michael Ontkean), revela os segredos sórdidos por trás da comunidade. Twin Peaks é uma parada no tráfico de drogas entre Estados Unidos e Canadá, Laura Palmer era promíscua e viciada em cocaína, e na floresta que cerca a cidade, há um mistério envolvendo corujas, uma caverna e uma passagem para outra dimensão. Com o tempo, o agente passa a suspeitar que uma entidade possa ser responsável pela morte de Laura.

Aquele episódio-piloto, dirigido por Lynch, e os demais 7 episódios que constituem a primeira temporada permanecem sedutores e sem igual ainda hoje. Graças a Lynch, a série tinha um visual cinematográfico – sua fotografia, com cores fortes e visuais luxuriantes, chamava a atenção – e era uma perfeita mistura de gêneros. Twin Peaks tinha suspense, drama e comédia irônica, temperados com pitadas de terror e até de elementos de folhetim. Os vários entreveros românticos entre os casais de Twin Peaks – quase nenhum deles acabou bem, para dizer a verdade – davam ao programa um ar ocasional de novela. Uma novela bizarra, no entanto, e na qual os clichês típicos desse tipo de história eram ora ridicularizados, ora transformados.

E no centro de tudo isso, havia o mistério: Quem matou Laura Palmer? Essa pergunta varreu os EUA naquela época e a série, de mero experimento desacreditado, virou sucesso que surpreendeu até a Lynch e Frost. Muitos americanos não foram ao cinema ver Veludo Azul, mas receberam em suas casas a versão light e não menos bizarra na forma de Twin Peaks. Na primeira temporada Lynch dirigiu ainda o Episódio 2, que se encerrava com o sonho de Cooper, no qual ele encontrava Laura e o Homem de Outro Lugar (Michael Anderson), o anãozinho, naquela estranha sala vermelha. Lá também podia ser visto o Bob (Frank Silva), que se assemelhava a um demônio, um homem cabeludo que tinha algo a ver com a morte de Laura. Quem era ele? O publico não sabia, não entendia direito, mas continuava fascinado com a imaginação digna de Fellini exposta por Lynch nas TVs americanas.

Um aparte: mais ou menos nessa época a Rede Globo resolveu exibir Twin Peaks nas noites de domingo, depois do Fantástico. Foi a primeira vez que a série passou na TV brasileira, mas a exibição foi um fracasso. Como de praxe, a Globo cortou cenas e depois reclamou que a audiência era baixa. Eles só exibiram até a revelação do assassino e o fim do caso Laura Palmer na segunda temporada, desrespeitando os espectadores. Alguns anos depois, porém, a Record (quando ela também era reconhecida como um paraíso das séries) exibiu Twin Peaks na integra, e a série teve uma repercussão bem melhor – foi quando eu a descobri.

Sobre a segunda temporada, ela começa tão bem quanto a primeira, mas logo a rede ABC resolveu destruir o que eles próprios haviam ajudado a criar – os executivos realmente não sabiam o que tinham nas mãos. A rede pressionou Frost e Lynch a resolverem o mistério de Laura Palmer e Lynch, que nunca gostou de explicar muita coisa nos seus filmes, se viu forçado a encerrar a força motivadora por trás da série… Apesar disso, a solução encontrada por eles foi perturbadora e rica em potencial dramático. Assim, no episódio 14 descobrimos o assassino, e no 16 o caso Laura é encerrado. A série continuou, mas demorou a reencontrar suas pernas, alguns personagens perderam o rumo e as novas tramas não agradaram. Porém, passado esse momento de instabilidade Twin Peaks se recupera e encerra sua segunda temporada com um dos episódios mais bizarros e inesquecíveis da história da TV, dirigido por Lynch.

Mas já era tarde. Sem o mistério o publico se desinteressou e Twin Peaks foi cancelada por baixa audiência. Foi o caso de ascensão e queda mais rápidas da história da TV. Lynch então resolveu revisitar aquele universo num filme. Em 1992, Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer estreou, mostrando a ultima semana de vida de Laura (Sheryl Lee) e a bizarra investigação do agente Chester Desmond (vivido pelo cantor Chris Isaak) sobre um assassinato anterior. Quase todo o elenco da série retornou e nomes como Kiefer Sutherland e David Bowie completaram o elenco.

Apesar da direção inspirada e onírica de Lynch e da atuação poderosa de Sheryl Lee, o filme não foi bem recebido na época. Era consideravelmente mais pesado que a série, e isso desagradou alguns fãs, e a maioria dos críticos não gostou de ver uma mulher sofrer por 2 horas. O filme, no entanto, tem sido reavaliado com o tempo e hoje é considerado uma obra impressionante e comovente. Lynch ainda brinca com a estrutura temporal, fazendo com que ele seja ao mesmo tempo prequel e continuação da série, e seus momentos finais trazem uma sensação de “círculo fechado”, de completude ao universo de Twin Peaks.

Universo este que ainda vale a pena revisitar, ainda mais neste belo box que reúne todos os episódios da série, o filme e muitos extras e cenas inéditas em alta definição. O mistério sobre Laura Palmer – que não por acaso, divide o nome com outra Laura, aquela do filme noir de Otto Preminger que parecia morta mas continuava viva nas mentes dos demais personagens da história – ainda é capaz de seduzir espectadores. Mergulhar no universo de Twin Peaks é entrar numa viagem como nenhuma outra. O espectador conhecerá a agitada vida noturna da cidade, mulheres lindas e a melhor torta da região. Só precisa ter cuidado com a floresta, à noite… Há quase 25 anos chegamos à Twin Peaks por causa de Laura Palmer. Muitos que fizeram essa viagem permanecem lá, enfeitiçados pelo seu mistério.

* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.