Todo cinéfilo conhece a grande contribuição que o cinema alemão deu à Sétima Arte. Isto significa dizer que a aproximação da nova arte ao movimento expressionista das artes pictóricas, literárias e teatrais resultou numa formulação que conseguia expressar todo o sentimento de crise espiritual oriunda dos conflitos nos campos de batalhas da Primeira Guerra Mundial. Nele ficou estampada a face da morte dos rostos daqueles jovens que morreram, revelando sentimentos de terror, misticismo e magia. Quando vemos os filmes que mais bem representam esse período, como O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene (1919) e Nosferatu, de Friedrick W. Murnau (1922) percebemos como a certeza dos sonhos de glória do império germânico cedeu espaço à derrota e à humilhação. Foi exatamente nesse clima que se fez enunciar o espírito expressionista, capaz de transformar o vazio da alma numa estética perfeita para lidar com essa dura realidade.

mO sucesso dramático deste cinema aproximou outro expoente alemão – Fritz Lang, com seus Dr. Mabuse, o Jogador (1922), Metrópolis (1927) e M, o Vampiro de Dusseldorf (1931), este já no período sonoro. Tal era o envolvimento com o teatro que Bertolt Brecht resolveu experimentar o cinema, trabalhando no argumento e filmagens de A Quem Pertence o Mundo? (1932), o primeiro e único filme a expressar abertamente propostas políticas do Partido Comunista Alemão. No entanto, com a chegada do nazismo, todo um florescente movimento artístico se fez ruir, com os cineastas emigrando para outros países.

O cinema alemão só ressurgiria no pós-Segunda Guerra Mundial no início dos anos 1970 com a criação das bases do Novo Cinema Alemão, depois do Manifesto de Oberhausen em 1962. Estamos falando da Alemanha Ocidental, pois a divisão do país oriunda dos acordos da guerra impôs comportamentos diferentes na população. De raíz capitalista, essa Alemanha, através de seus jovens cineastas Volker Schlöndorff, Wim Wenders, Hans-Jürgen Syberberg, Werner Schroeter e Rainer W. Fassbinder, sob a liderança de Alexander Kluge e Edgar Reitz, conseguiram recolocar o cinema alemão no mundo, agora com características que se relacionavam diretamente com a nova tecnologia da televisão, fazendo surgir escolas de cinema e novas salas de exibição. Mas o mais importante foi fazer o realizador alemão acreditar novamente em sua potencialidade criativa. Interessante dizer que Werner Herzog, outro nome desse conjunto, sempre se considerou fora do movimento, apesar de simpatizante.

a-vida-dos-outrosCom a queda do muro de Berlim e a reaproximação da sociedade alemã, novo ajuste foi efetivado no mundo do cinema dando vez ao movimento que ficou conhecido como Novíssimo Cinema Alemão, revelando outros cineastas com características tão distintas que parece até impossível registrá-las como o de um movimento estético. No entanto, conduziu a um fértil entrelaçamento de talentos e a um intercâmbio de ideias. Tomando corpo a partir da virada do século, são expressões desse cinema Tom Tykwer (Corra Lola, Corra – 1998), Wolfgang Becker (Adeus Lenin, 2003), Oliver Hirshbiegel (A Queda! – 2004), Fatih Akin (Contra a Parede – 2004), Hans Weingartner (Edukators – 2004), Florian Henckel von Donnersmarck (A Vida dos Outros – 2006), e outros talentos. Estes cineastas e suas obras seguintes revelaram uma aproximação com o cinema de apelo mais comercial, pois conseguiram introduzir o humor nos sisudos e dramáticos filmes das décadas anteriores, recolocando a Alemanha entre os países de referência qualitativa (claro, com o desenvolvimento da Berlinare, o segundo festival de cinema europeu, depois de Cannes, que o impulsionou).

Porém, outros cineastas seguiram um caminho diferente, retomando a dureza da vida no cotidiano da sociedade de consumo em que a Alemanha se insere hoje, sem esquecer suas dramáticas raízes dos resquícios do nazismo, como um fantasma pronto a se manifestar a qualquer momento. São realizadores que rejeitam qualquer rótulo, ou mesmo não se veem constituindo um bloco estético aproximativo, o que os faz aproximar do conceito de cinema de autor, desenvolvido na Nouvelle Vague francesa. São contribuições marcadas por inovações à linguagem cinematográfica que enriquecem o debate sobre a memória e a cultura do povo alemão. Como costumam se autoproclamar “somos realizadores que assumimos o rigor formal em nossos filmes, a contundência temática e o risco de se rebelar contra a falácia da indústria cinematográfica que insiste em empurrar ao espectador ‘enlatados’ em forma de filme”. Portanto, a nova postura do cinema alemão atual é a de ousadia e coragem, com soluções audaciosas para retratar a realidade do país. Relaciono aqui os cineastas Christian Petzold, Thomas Arslan, Emily Atef, Ulrich Köhler, Angela Shanelec, Oskar Roehler, Andres Veiel e Andreas Dresen.

E é um filme em especial deste último cineasta que gostaria de destacar. Depois de fazer os sensíveis e humorados Entre Casais (2002) e Verão em Berlim (2005), realiza o drama Sétimo Céu (2008), trazendo à tona um tema tabu: a relação afetiva e sexual de personagens da chamada “Terceira Idade” com fortes cenas quase explícitas e com ingredientes que elevam o amor a uma condição sublime como seria posteriormente trabalhado em Amor (2012), de Michael Haneke.

19826159Mas é de Parada em Pleno Curso (2011), o filme que toca outra questão tabu – a morte -, que desejo falar. É um filme realista (muito próximo de um documentário), extremamente duro ao mostrar, sem meias-tintas, a agonia de alguém que vai morrer de câncer. O diretor se empenha em mostrar um trabalho honesto e sensível, optando por um realismo pungente que começa nos primeiros minutos do filme, no momento em que o personagem Frank, um metalúrgico de 44 anos, casado e pai de dois filhos, recebe o diagnóstico e é avisado que não há esperança, e termina um instante depois que a morte põe fim à agonia.

Andreas nos expõe ao martírio vivido pelo personagem, acompanhando os momentos de transformação em sua vida. A perda da memória, a dificuldade de mover o corpo, o pânico e a depressão entre quatro paredes, a fraqueza física que o impede de comer, de escovar os dentes, todos esses passos de manifestação progressiva da doença são nos impostos numa narrativa fria, sofrida, dolorosa. A morte, essa etapa da vida de todos nós, sempre é tratada no cinema com certo distanciamento e como algo que desejamos não pensar. No entanto, em Parada em Pleno Curso somos convidados, ao conviver com o drama de Frank (e da mulher e dos filhos, que têm dificuldade de entender a morte programada do pai), a melhor entender o significado da morte, que ela poderia ter um tom menos macabro, que ela é uma etapa real de todos nós. Todas essas sensações são brilhantemente proporcionadas pela atuação convincente dos atores, que não parecem estar interpretando tal sua naturalidade em viver as etapas agônicas. Claro, também é de se ressaltar a competência de Dresen em dirigir um filme que consegue registrar com realismo extremo o drama de uma realidade cada vez mais presente na vida moderna: a presença de cânceres sem alardes e sem anúncios prévios. O filme foi vencedor na Mostra “Um Certain Regard” no Festival de Cannes/2011.