Há filmes que conseguem como poucos imprimir um senso de identidade bem delineado, algo que faz o espectador vê-los como únicos. Ainda que sejam mais uma dentre tantas outras produções cinematográficas, e ainda que claras influências ecoem no desenrolar da trama, a tal sensação continua dizendo ao espectador: “Esse filme vai te assombrar por um bom tempo”. “Um Estranho no Lago” pertence a essa categoria.

A trama apresenta Henri (Patrick d’Assumçao), um homem que passa a visitar as margens de um lago sem saber que o local é uma espécie de ponto de encontro de homossexuais. Lá ele desenvolve uma amizade com Franck (Pierre Deladonchamps), jovem que sente uma atração cada vez maior por um terceiro frequentador do lago, Michel (Christophe Paou), o qual esconde um perigoso segredo.

“Um Estranho no Lago” inicia como um filme “de verão”, quase uma leve trama de Eric Rohmer, só que bem mais silenciosa. Com a adição de Michel à história, porém, o filme ganha ares de thriller de Hitchcock, no qual a paixão é doentia e a ameaça anunciada é clara ao espectador e secundária às personagens, num jogo de tensão que o mestre do suspense popularizou no cinema e que a direção de Alain Guiraudie assimila mantendo uma louvável identidade própria. Igualmente interessante é a naturalidade com que ocorre na trama esse deslocamento de drama de verão para o suspense, o que releva um domínio dos gêneros e da transição entre eles por parte do diretor.

Outro ponto forte é a apresentação do ambiente do lago como um elemento que atua quase como um personagem. Ele é imperativo na mise-en-scène; tudo se desenrola nele e nada é mostrado do mundo exterior àquele aparente idílio.

De início, o lago é o refúgio, o microcosmo próximo da perfeição em que homens vão para ser livres e viver seus desejos sem pudor, e onde um estranho senso de comunidade se dá entre quase desconhecidos que, apesar de tudo, respeitam o convite e a recusa de cada um mais até do que no mundo fora do lago. Irônico como é justamente Henri que causa estranheza ali, sendo o único que não frequenta o lago com fins sexuais e por sequer tirar a roupa nesse local, o que já atua como um prenúncio de que a liberdade que ali escancara a nudez não é tão expressiva assim a ponto de aceitar o discreto ato de individualidade.

Se o lago começa como refúgio, ele passa a ser uma prisão a partir do crime que ali ocorre, um assassinato por afogamento. Tal como James Stewart em “Um Corpo Que Cai”, Franck é inebriado por seus sentimentos e se aproxima do perigo quanto mais sua relação com Michel se aprofunda. A grande sacada do diretor é utilizar a mesma tortura que Hitchcock tanto aplicou ao seu público ao fazê-lo sempre esperar pelo pior, construindo uma atmosfera claustrofóbica ao redor do local que antes era sinônimo de liberdade, mas sem usar os mesmos recursos da linguagem. Dessa maneira, a partir de pequenos detalhes como uma fala que deixa escapar a intensidade da paixão de Franck ou o mau-caratismo de Michel, Guiraudie alcança o mesmo objetivo que Hitchcock quando se valia, por exemplo, de ações explícitas como a personagem de James Stewart ao tentar transformar a namorada em uma cópia fiel da falecida mulher por quem se apaixonara em “Um Corpo Que Cai”.

Curioso como o jogo de ansiedade com o público se encaixa tão bem com o tom naturalista impresso à direção, que toma para si as longas pausas da vida real. Essa atmosfera realista se expressa de maneira ainda mais interessante com a montagem econômica, estruturadora de tomadas que não desviam o olhar dos corpos, da nudez frontal masculina, das cenas de sexo homossexuais e nem do assassinato. Sem cortes, a cena em que esse último ocorre foi elaborada de forma a fazer do espectador um legítimo voyeur, como se presenciasse o crime escondido entre arbustos, colocando-nos na posição de um provável frequentador do local, perto do lago e ao mesmo tempo distante o suficiente para ser uma testemunha a salvo.

Além da fluidez da trama, outros dois elementos contribuem para a sensação de “real” que o filme tenta passar. A primeira delas é mais óbvia, expressa pela ausência de trilha sonora instrumental que não faz falta porque o diretor consegue enfatizar determinados momentos com a já citada decisão de não “virar o rosto” da câmera para longe de determinadas situações. O segundo ponto é relativo a como Guiraudie apresenta, ao final do filme, a inesperada crueza das decisões e ações de Franck, Henri e Michel. Resultado: muitos espectadores devem sair da sessão um tanto confusos pelo choque, o que deixa alguns irritados e outros extasiados.

Pela capacidade de imprimir complexidade na inicial calmaria do lago, coordenar a transição entre o drama e o thriller com maestria e, no meio disso tudo, dar ao filme uma identidade bem delineada, Alain Guiraudie presenteia o espectador com um curioso estudo sobre a paixão humana.

Cena de Um Estranho no Lago