Com “Uma Mulher fantástica” (Uma mujer fantástica, 2017), o chileno Sebastián Lelio realiza um curioso movimento: ele se distancia da intensidade impressa ao espírito livre da personagem-título de “Gloria” (idem, 2013), seu filme anterior. Ao trazer a proposta de um filme com uma protagonista trans, ele resiste à tentação de mostra-la em cores mais quentes e gestos mais expansivos, numa quebra de expectativa aos que esperam por um retrato mais estereotipado do que seria a realidade dessa pessoa.

Marina, a mulher fantástica do título, é interpretada com maestria por Daniela Vega, a ponto de gerar buzz sobre a possibilidade de se tentar a indicação da atriz ao Oscar – o filme foi escolhido como o representante chileno a uma vaga na premiação norte-americana. Não deixa de ser uma possibilidade, uma vez que o magnetismo que Vega tem com a câmera faz com que nos concentremos em especular sobre suas intensas, porém nunca dadas gratuitamente ao espectador, vivências internas.

Ela internaliza na trama seu luto a partir do aneurisma e morte do companheiro, Orlando (Francisco Reyes), com quem tinha uma relação de carinho e cumplicidade. A partida repentina dele é duplamente violenta; ao passo que ela perde o aparente amor de sua vida, Marina também lida com um mundo que não tolera sua existência e a violenta física e psicologicamente.

Mesmo aqueles que deveriam protegê-la enquanto cidadã, como a policial ou o médico que cruzam seu caminho, tratam-na com desconfiança: a primeira, por acreditar na possibilidade de Marina ter matado o companheiro para se defender de uma relação abusiva – coisa comum entre pessoas “desse tipo”, segundo a agente; e o segundo, por acreditar que ela o drogou e assassinou para roubar bens ou alguma atitude similar.


PERTURBADORA, REPUGNANTE

Perante tamanha antipatia para com a figura dessa mulher, a qual acompanhamos diretamente e sabemos da inocência, a questão da expectativa do espectador novamente tenta se impor: esperamos que ela lute contra tais injustiças, que levante sua voz e se faça ouvir, que possa chorar seu luto propriamente dito. Nada disso, porém, acontece em “Uma mulher fantástica”.

A passividade de Marina revolta e, ao mesmo tempo, aponta para possibilidades do passado dessa personagem. O que a leva a resistir tanto para levantar sua voz? Seria o medo de violências ainda maiores que ela sofre em silêncio? Tudo aponta que sim, pois há momentos como os em que ela sofre abusos psicológicos dos familiares de Orlando – ele tinha ex-mulher e filhos e, cada um do seu jeito, encontram uma forma nada sensível de dizer o quão perturbadora e repugnante é Marina por ser uma mulher em um corpo entendido como masculino, ainda em transformação.

Ironicamente, perturbadoras e repugnantes são como passamos a entender as ações contra ela ao longo da história. Lelio nos mantém ao lado de Marina, mas nunca de maneira a adentrarmos totalmente em seus pensamentos, o que gera um efeito interessante no exercício de empatia que ele propõe. Assim, as instituições e a aparentemente família “decente” de Orlando se mostram com uma faceta feia.

Longe de trabalhar o tema apenas na perspectiva de mocinhos e vilões, o roteiro de Lelio e Gonzalo Maza dá conta de abarcar também a solidão de Marina. Isso se dá quando mesmo personagens mais “imperfeitos” e próximos a ela, como sua irmã e cunhado, não conseguem compreender de todo como ela é e porque age como age.


TENSÃO, CONTENÇÃO

A direção de Lelio, assim, consegue equilibrar tensão e contenção de uma maneira muito própria às vivências das mulheres, sempre tão reguladas socialmente. A escolha é sensível, pois dialoga de forma especial com as vivências específicas de mulheres trans que, junto às lésbicas, denunciaram mais casos de agressão motivada por gênero que gays no Chile em 2016, por exemplo. Buscar informações como essa só reforça o quanto a estratégia de Marina de tentar não revidar as agressões sofridas, por mais injustas que sejam, é questão de sobrevivência, e não de orgulho. Infelizmente.

Só de retratar um pouco da perspectiva desse tipo de personagem, “Uma mulher fantástica” já valeria a conferida. Ainda que em alguns momentos a passividade da protagonista incomode o espectador, dá-se a entender que questiona-la é uma das intenções da direção de Lelio. Isso é reforçado ainda pela opção de não nutrir tons sombrios na fotografia: a cidade é sempre cheia de luz, e mesmo o luto contido de Marina não abre espaço para tons mais fechados de cor ou sombras mais demarcadas na iluminação. Há momentos de leveza quase cômica também, como quando ela se imagina em meio a um número musical numa boate.

Todas as boas intenções de Lelio e a sensibilidade com que tenta abordar os temas de “Uma mulher fantástica” não disfarçam, ainda assim, as falhas de roteiro. Há o mcguffin da chave que Orlando deixa para trás numa sauna, a qual não consegue criar curiosidade o suficiente no espectador, além de um conflito não resolvido com o filho de Orlando e a insistência da policial em acreditar que Marina cometeu um crime em legítima defesa, os quais necessitam de um fechamento mais redondo que o que vemos no longa, dentre outros detalhes menores de narrativa. Não chegam a prejudicar o filme de todo, mas impedem que o longa vá além do bom, sendo a conferida de “Uma mulher fantástica” a desculpa perfeita para navegar com mais atenção na filmografia de Lelio.