O que faz um personagem criado no fim do século 19 ser tão atraente para o cinema por mais de cem anos? Quando o primeiro livro “Um Estudo em Vermelho” foi publicado, lá em 1887, ninguém imaginava que a criação de sir Arthur Conan Doyle resultaria em um dos personagens mais revisitados da história: Sherlock Holmes. A relevância do personagem não seria só literária, mas também se estenderia ao cinema, arte que viria a ser apresentada para o público apenas em 1895, oito anos depois da primeira aparição do detetive.

De seu lançamento até 1939, o personagem já havia sido retratado dezenas de vezes no cinema: a primeira versão de que se tem notícia é de 1900. Paralelamente, as histórias do detetive e de seu fiel escudeiro, John Watson, também ganhavam os palcos em montagens teatrais de sucesso. Logo, não é de se surpreender que Hollywood tenha investido e dado início ao que se tornaria uma franquia com 14 filmes lançados entre 1939 e 1947.

Um detetive precisa de fatos, não de lendas e rumores”

Só no ano-objeto desta coluna, o público pôde conferir duas aventuras do detetive. A primeira delas foi “O Cão dos Baskervilles”, adaptação da obra literária de Doyle lançada 37 anos antes. O filme estreou em março, marcando a estreia de Basil Rathbone e Nigel Bruce nos papéis de Sherlock Holmes e John Watson, respectivamente; uma escalação que se repetiria outras 13 vezes.

Realizado pela Fox Studios, o filme tem direção de Sidney Lanfield, cineasta basicamente contratado pelo estúdio para dirigir comédias de sucesso moderado. “O Cão dos Baskervilles” leva Holmes à investigação de uma misteriosa maldição que assola uma família: os Baskervilles, que acreditam que um cão matou vários membros do clã. Aqui, Watson (Nigel Bruce) tem uma participação prolífica, já que o detetive interpretado por Rathbone chega a descreditar a história. 

Ainda que não haja grandes inovações estilísticas em “O Cão dos Baskervilles”, o filme é competente no que se propõe, principalmente porque busca preservar o aspecto literário da obra original com o uso de cartas que se fundem aos flashbacks da história, além de muitos planos-detalhe destacando páginas de jornal, de forma a ambientar o espectador no tempo da narrativa e, ao mesmo tempo, movimentar o que acontece na história. A direção de fotografia é outro destaque ao conservar o tom sobrenatural que permeia a película.

Também há que se destacar a dinâmica Holmes-Watson: as trocas entre os dois personagens são enriquecidas pela química entre os atores. Rathbone, em especial, cria um dos Sherlocks mais icônicos do cinema, com elegância e cinismo para dar e vender. “Um detetive precisa de fatos, não de lendas e rumores”, afinal.

Elementar, meu caro Watson!”

Em setembro daquele mesmo ano, a dupla retornou em “As Aventuras de Sherlock Holmes”, filme baseado na peça de William Gillette. Aqui, temos outro personagem importante da obra de Conan Doyle: o vilão professor Moriarty. 

Há que se destacar a aparição de Ida Lupino, estrela que se tornaria a primeira mulher a dirigir um filme noir e a única cineasta prolífica no cinema mainstream pós-Dorothy Arzner – uma condição histórica, porém solitária. Em “Sherlock Holmes”, no entanto, Lupino é exatamente o que a indústria espera dela: uma atriz competente em um papel padrão de donzela em perigo. Ainda assim, seu trabalho aqui lhe rendeu bons frutos: a década seguinte lhe reservaria alguns de seus papéis mais conhecidos, além de, é claro, seus créditos na direção.

A direção de “As Aventuras de Sherlock Holmes”, dessa vez, fica por conta de Alfred L. Werker, outro nome contratado pelo estúdio para produções pontuais e sem grande impacto. O trabalho dele aqui é bastante competente, resultando em uma produção divertida e dinâmica, sem grandes inovações narrativas ou técnicas, a despeito de ter ficado marcada por ter a primeira aparição da frase “Elementar, meu caso Watson”.

A atemporalidade de Doyle

Depois dos dois lançamentos em 1939, a franquia “Sherlock Holmes” mudou de casa, saindo da Fox e indo em direção à Universal, esta já acostumada a investir em personagens conhecidos do público (naquela época, os filmes de monstros eram a coqueluche do estúdio). Rathbone e Bruce foram mantidos e uma série de filmes veio nos próximos anos. 

A pergunta do primeiro parágrafo pode ter várias respostas: 1. dinheiro; 2. possibilidades narrativas que o personagem apresenta; 3. apresentações de diversas versões e linhas temporais… Ok, a lista vai longe. Os primeiros filmes do detetive britânico interpretado por Basil Rathbone, no entanto, não estão dispostos a apresentar essas respostas.

No fim do dia, essas duas produções são divertidas e seguem, sem pretensão, histórias que o público aprendeu a amar pela escrita envolvente de seu autor. Não há tentativa de inventar a roda. Talvez por isso o resultado seja tão eficaz.

‘Uma Viagem Pelo Cinema de 1939’: ‘A Mulher Faz o Homem’, de Frank Capra

Na história do cinema, há aqueles filmes que são cruciais na construção da persona de um ator perante o público e a própria indústria. Audrey Hepburn e "Bonequinha de Luxo", Johnny Depp e "Edward Mãos de Tesoura", Marcello Mastroianni e "8 1/2" são alguns dos exemplos...

Uma Viagem Pelo Cinema de 1939: ‘O Corcunda de Notre Dame’, de William Diertele

O incêndio que destruiu a catedral de Notre Dame em abril deste ano fez muitos cinéfilos lembrarem de suas primeiras referências da majestosa igreja parisiense, que, ao menos para os da minha geração, apareceram por cortesia da Disney, com a animação “O Corcunda de...

‘Carícia Fatal’, de Lewis Milestone

Entre os títulos de 1939, talvez "Carícia Fatal" fique perdido em meio a fitas como "...E o Vento Levou", "O Mágico de Oz" e "No Tempo das Diligências", que viraram modelos para seus respectivos gêneros e apontaram direções que o cinema seguiria nas décadas que...

‘O Morro dos Ventos Uivantes’, de William Wyler

O Morro dos Ventos Uivantes” é daquelas obras que, volta e meia, surgem novamente nas pilhas de roteiros dos estúdios e produtoras de cinema. Não é difícil entender o porquê: a obra de Emily Brontë é extremamente cinematográfica, e tem um dos elementos mais...

‘Ninotchka’: Greta Garbo se prepara para (não) dizer ‘adeus’ e Billy Wilder diz ‘oi’

Em 1939, o star system hollywoodiano já estava mais que estabelecido e os rostos dos atores e atrizes estampavam não apenas pôsteres ao redor do mundo, como também o imaginário de quem sentava na sala escura. Se os clássicos daquele ano são lembrados pelos cinéfilos...

“O Mágico de Oz” e o ocaso de Judy Garland

O que se tem com a junção de uma história cativante e cheia de metáforas, uma música icônica e uma das estrelas mais talentosas que o show business já viu? Essa série de hipérboles poderia se referir a muitos clássicos do cinema (ainda bem!), mas cai como uma luva...

Uma Viagem Pelo Cinema de 1939: Introdução

Perto das outras artes, o cinema é um adolescente. Esse jovenzinho de mais de 120 anos passou, no entanto, por inúmeras transformações técnicas, logísticas e, claro, narrativas. Ainda assim, clássicos são (quase?) insubstituíveis. Prova disso é que, mesmo que alguns...