Os olhos azuis acompanhados de sobrancelhas que pareciam ter vida própria e o nariz arrebitado que a tornaria uma candidata certa para “A Feiticeira” são algumas das características que logo vêm à mente quando se fala ou lê o nome de Vivien Leigh. Mas a atriz era bem mais do que isso. Poucos nomes na história da sétima arte podem se gabar de ter dado vida a um personagem marcante, e Vivien conseguiu dois deles, que sempre lhe garantem lugar nas listas de melhores interpretações do cinema: Scarlett O’Hara, de “…E o Vento Levou”, e Blanche DuBois, de “Uma Rua Chamada Pecado”.

Ambas representantes do arquétipo da southern belle (em tradução livre, ‘bela do Sul dos EUA’), Scarlett e Blanche revelam duas facetas de Vivien, dois momentos de uma artista em ebulição. Se quando viveu a primeira a atriz era uma ingenué, a novidade do verão, no momento em que colocou os pés em New Orleans no filme de Elia Kazan o que se viu foi uma mulher em completo controle de sua arte, experiente com os anos intercalando cinema e teatro. Só que Vivien era mais que um par de olhos azuis e, com certeza, mais que Scarlett e Blanche. Sua curta filmografia – resultado de uma carreira atrapalhada por uma vida pessoal envolta em crises pessoais – é cheia de pequenos momentos que cimentam a atriz britânica como uma das grandes de sua geração.


O começo

Vivien Leigh nem sempre foi Vivien Leigh. Ela veio ao mundo como Vivian Mary Hartley em novembro de 1913. Britânica no passaporte e na identidade perante o público, Vivian Mary nasceu em Darjeeling, na Índia, onde seus pais moravam antes de retornarem à Inglaterra, quando a menina tinha seis anos. Na escola, uma de suas primeiras amigas foi Maureen O’Sullivan, que anos mais tarde se tornaria colega de profissão e ganharia fama como Jane nos filmes de Tarzan produzidos entre as décadas de 1930 e 1940.

Desde muito cedo Vivian Mary se interessava pelas artes. Ela teve aulas de balé na infância e, pelas boas condições financeiras dos pais, podia viajar pela Europa. Quando retornou para a Inglaterra, no início da década de 1930, começou a ter aulas na Royal Academy of Dramatic Arts. Naquela mesma época, ela se casou com um advogado chamado Leigh Holman, de quem emprestou o nome para se tornar Vivien Leigh.

A jovem conciliou os primeiros anos de carreira com o casamento e uma filha recém-nascida. Em 1935, após alguns papéis modestos, ela começou a ver o sucesso no teatro, com a peça The Mask of Virtue. Entre um espetáculo e outro, Vivien conheceu o ator Laurence Olivier. Os dois se divorciaram de seus respectivos parceiros e iniciaram um casamento que também renderia frutos no cinema.

Falando na Sétima Arte, Vivien teve alguns trabalhos pequenos ainda na Grã-Bretanha antes de ser engolida pela máquina dos grandes estúdios de Hollywood. Seu primeiro papel de destaque foi no drama histórico “Fogo Por Sobre a Inglaterra” (1937). Era um papel coadjuvante em um filme sobre a ameaça espanhola ao reino de Elizabeth I (Flora Robson). A monarca deveria ser a personagem principal – e o era -, mas o que realmente marca o filme é o desempenho de Vivien como uma das damas de companhia da rainha. Leigh divide a cena com Laurence Olivier, no primeiro de vários filmes que fariam juntos, e a química entre o casal faz com que esse seja o ponto alto de uma produção genérica.

O trabalho seguinte de Vivien é em “Jornada Sinistra” (1935), mais um drama com pano de fundo histórico. Aqui, ela é uma espiã na Primeira Guerra Mundial. Leigh surge mais madura e contida, sem os maneirismos que marcariam (positivamente) seus trabalhos mais conhecidos. Entre 1937 e 1938, ela mostraria ainda talento para a comédia no pouco lembrado “Tempestade em Um Copo d´Água” e em “Um Yankee em Oxford” – neste segundo filme, ela divide os créditos com a amiga de infância Maureen O’Sullivan.


Scarlett e o que veio depois

O charme de Leigh neste dois filmes são, de certa forma, aperitivos para o que viria a seguir. Depois de um teste de elenco badaladíssimo, a atriz desbancou Tallulah Bankhead, Lana Turner e a então favorita Paulette Godard e ganhou o papel que definiria a sua carreira.

Épico de mais de quatro horas, “…E o Vento Levou” (1939) se vê datado hoje em dia pela forma com que joga de escanteio as suas personagens negras (e aqui faço mea culpa, pois sempre celebrei o trabalho de Hattie McDaniel, maravilhosa, mas relegada a um estereótipo que o cinema parece não deixar de lado). Mesmo assim, uma coisa é certa: Vivien Leigh toma conta do filme. Com ela, acompanhamos Scarlett ser forçada a deixar uma vida de luxo para crescer em plena Guerra Civil. E ainda que a personagem mantenha a essência de garota mimada, são nuances no trabalho de Leigh que nos fazem torcer e sofrer com ela. Um exemplo é a cena em que a personagem retorna a Tara após o parto de Melanie Wilkes. O clássico discurso de “jamais sentirei fome novamente” tem ares de vendetta, mas é a paixão com que Scarlett/Vivien profere aquelas palavras que torna aquele texto em algo mais que um simples choro de pobre menina rica.

Pelo papel, Vivien ganhou um merecido Oscar de melhor atriz e teve seu nome cravado na história da Sétima Arte. As expectativas eram altas, e seu primeiro papel após “…E o Vento Levou” pode não ter tido a força de Scarlett, mas foi um atalho bem-vindo. Em “3 Semanas de Loucura” (1940), ela voltou a fazer par com Laurence Olivier em um noir sobre um homem que precisa esconder um crime cometido em autodefesa. É um filme muito pálido em comparação aos outros da época, mas um exercício interessante de dois atores que não navegaram nesse tipo de filme ao longo da carreira.

Nos anos 1940, Leigh fez poucos trabalhos, ao passo que sua saúde mental começava a se deteriorar. Ela também sofreu abortos espontâneos e viveu uma entressafra profissional, com filmes caros que não tiveram retorno de público.

A exceção para essa época foi “A Ponte de Waterloo” (1940), onde ela retorna à Primeira Guerra Mundial e aos braços de Robert Taylor, com quem contracenou em “Um Yankee em Oxford”. O filme é uma jóia por vezes esquecida na filmografia dos dois atores, que estão em plena forma. Recém-saída dos vestidos de cortina de Scarlett O’Hara, Vivien tem mais uma personagem que passa por um arco transformador ao longo da história. O melodrama que ressoa por todo o filme de Mervyn LeRoy constitui na atmosfera perfeita para o drama de uma bailarina que precisa se prostituir ao ser confrontada com a necessidade. Leigh está magnética e é filmada no auge da beleza, mas é a forma com que vive as mudanças forçadas da personagem que lhe firmam como uma das grandes de sua época.

“Waterloo” foi um último sopro criativo antes do que seria uma década de filmes erráticos: “Lady Hamilton, a Divina Dama” (1941), “César e Cleópatra” (1945) e “Anna Karenina” (1948). Na verdade, Leigh participou de apenas mais três projetos nesse período, e vale dizer que, apesar de os resultados terem decepcionado, a atriz não deixou de se desafiar em nenhum deles, seja interpretando uma personagem real em um filme que abre comparações com “…E o Vento Levou” (‘Lady Hamilton’), ou se entregando a textos complexos de George Bernard Shaw (‘Cesar e Cleópatra’) e Leo Tolstoy (‘Anna Karenina’).


Blanche DuBois e o começo do fim

A qualidade do texto e a associação a grandes dramaturgos se tornou, de certa forma, a marca do casal Leigh-Olivier. Seja no cinema ou no teatro, ambos viveram papéis que são o Santo Graal de qualquer ator. Um deles marcou o retorno de Vivien às graças dos críticos e da indústria. Estou falando, claro, da southern belle Blanche DuBois de “Uma Rua Chamada Pecado” (1951), filme de Elia Kazan baseado no texto de Tennesse Williams.

Blanche é um daqueles personagens que toda atriz sonha em interpretar, assim como Martha de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, Hedda Gabler e Lady Macbeth. Um Google rápido mostra uma lista impressionante de mulheres que já “dependeram da bondade de estranhos”: Cate Blanchett, Jessica Lange, Rachel Weisz, Gillian Anderson, Isabelle Huppert, Rosemary Harris, Jessica Tandy (que originou o papel na Broadway)… A lista continua. Mas ainda é de Leigh o retrato definitivo da mulher que salta do bonde chamado Desejo em direção a uma vida mais caótica que aquela que abandonou.

Vencedora de mais um merecido Oscar, a atriz fez com Blanche o mesmo que havia feito com Scarlett O’Hara anos antes. Não deixa de ser melancólico ver a personagem descer em uma espiral em direção a um colapso, já que, nos bastidores, a atriz já sofria com seus demônios. Ainda assim, Vivien aproveita toda a riqueza do texto de Tennessee Williams para criar um tipo multidimensional, a despeito da imagem que passa para a irmã e o cunhado. A propósito, a dobradinha com Marlon Brando é um deleite, já que ambos não poderiam ser mais opostos – a atriz clássica de teatro e o ator que praticamente inaugurou no cinema o Método, técnica de atuação que exige do intérprete o uso da memória afetiva para criar as emoções em cena.

Infelizmente, a saúde de Vivien foi se deteriorando e ela não conseguiu manter o ritmo após o sucesso de “Uma Rua…”. Na década de 1950 ela fez apenas mais um filme, o melodramático “O Profundo Mar Azul” (1955). Baseada na peça de Terrence Rattigan, a película traz a atriz como uma mulher dividida entre dois homens. Assim como no filme de Elia Kazan, “Mar Azul” tem uma dose de melancolia por ser o último grande momento de Vivien no cinema.

Ela ainda retornou ao universo de Tennessee Williams mais uma vez em 1961, quando dividiu a cena com um jovem Warren Beatty em “Em Roma na Primavera”, mas a despeito de alguns rompantes de brilhantismo aqui e outros ali, Vivien já parecia estar desistindo. O fato de ela ter naquela época mais de 45 anos era outro agravante – se hoje as atrizes parecem ter data de validade em Hollywood, antigamente esse prazo era ainda mais curto. O divórcio de Laurence Olivier e as crises pessoais que foram se agravando não a deixaram continuar.

(Uma curiosidade: tanto “O Profundo Mar Azul” quanto “Em Roma na Primavera” ganharam refilmagens, com Rachel Weisz (que também fez Blanche no teatro) e Helen Mirren nos papéis principais, respectivamente. Mirren contracena com Rodrigo Santoro, em um de seus primeiros trabalhos fora do Brasil).

O fim

A última aparição de Vivien Leigh no cinema foi em “A Nau dos Insensatos” (1965). Com a aparência mais madura que já havia ostentado no “Em Roma na Primavera”, a atriz é mais uma vez uma mulher do Sul dos Estados Unidos, mas agora sem comandar a história do início ao fim. “A Nau…” é um filme de elenco, que conta ainda com Simone Signoret, Jose Ferrer e Lee Marvin, entre outros.

Ela ainda brilha em “A Nau” e tem, digamos, a personagem menos pior do filme. Seria a promessa de uma carreira de coadjuvante, do que se chama de “character actress”, a atriz especializada em tipos. Não que fosse ruim. Vivien Leigh era uma atriz completa e tinha muito a oferecer ao cinema, ao teatro e, por que não, à televisão.

Quis o destino que ela morresse aos 53 anos, em 1967, em decorrência de uma tuberculose. A doença que mais a atormentou, no entanto, foi o transtorno bipolar, na época chamado de psicose maníaco-depressiva. Ele tirou seu sono e sua vontade, mas não conseguiu apagar o brilho que reluzia a cada vez que ela aparecia em cena. Foram apenas vinte filmes e a sensação de que ela poderia ter ido além e feito mais trabalhos na telona, mas quantas pessoas de filmografia abarrotada podem dizer que fizeram Scarlett O’Hara e Blanche DuBois em uma mesma vida?