Isso vai mexer com os brios dos fãs de quadrinhos, mas lá vai: Watchmen: O Filme (2009), de Zack Snyder, não só é um bom filme, mas um importante contraponto à onda de filmes de super-heróis desfechada por Hollywood contra nós, pobres mortais, nas últimas década e meia. E digo mais: um contraponto quase tão necessário quanto o original dos quadrinhos, que pôs o conceito de história de super-herói no divã, enchendo-o de uma complexidade psicológica quase inexistente no mainstream do gênero. Ufa! Se você ainda está aí, eu vou explicar por quê.

Publicada entre 1986 e 87, Watchmen, a HQ original concebida pelo autor Alan Moore e o desenhista Dave Gibbons, foi, nas palavras da emissora britânica BBC, o momento em que os quadrinhos “cresceram” e ganharam status de arte. Com sua história original sobre um grupo de super-heróis inseridos no mundo “real”, o nosso, e agindo como tal – interferindo em eventos momentosos, vivendo vidas medíocres, cometendo crimes, adoecendo – e uma estrutura formal inovadora, cheia de elipses temporais, histórias-dentro-da-história e experimentos narrativos, como backstories na forma de relatórios do governo, autobiografias e que-tais, a obra foi uma dupla reinvenção: do seu gênero e da própria HQ como meio de expressão. O que, claro, não tardaria a atrair a cobiça de Hollywood.

Tentativas de criar uma versão cinematográfica de Watchmen existem desde pelo menos 1987 – uma das que chegou mais perto de se concretizar fora a de Paul Greengrass, no fim dos anos 1990, e que traria Denzel Washington no papel do Dr. Manhattan (!). Mas tanto Greengrass quanto os demais diretores convidados para o projeto – Terry Gilliam (Brazil: O Filme e Os Doze Macacos) e Darren Aronofsky (O Lutador, Cisne Negro) entre eles – empacaram diante da evidente complexidade do original. Caberia a Snyder, um artista egresso da publicidade e adepto do cinema “épico” à Michael Bay, cheio de ruído, CGI e testosterona, tocar adiante a adaptação de Moore.

As expectativas eram sombrias: o último trabalho de Snyder fora 300, adaptação de outra HQ por um nome importante dessa arte, Frank Miller, e o resultado havia sido bombástico, caricato e simplificador, reduzindo a narrativa mítica e estilizada do original a um “filme de Hollywood” vulgar – levando Top Gun: Ases Indomáveis e Dias de Trovão para o confronto entre gregos e persas, e acrescentando doses extravagantes de violência no processo.

O filme que emergiu, se não é exatamente um triunfo artístico – cinéfilos até hoje salivam ao pensar no que Watchmen teria sido sob Greengrass – também não é uma versão Transformers da obra-prima de Moore e Gibbons. Na verdade, Watchmen é provavelmente a transposição mais fiel já feita de uma HQ para o cinema – algo que, se não é um mérito em si, costuma ser um dos principais argumentos invocados por fãs do gênero para criticar as versões que Marvel e DC fizeram de seus heróis mais famosos. E, em seus poucos desvios, Snyder esboça críticas inteligentes ao culto da violência e à fetichização dos corpos típicas dos filmes de ação – algo a que ele próprio havia se entregado com afinco em 300. Mesmo sem estar à altura de sua inspiração – e haveria filme capaz de concentrar toda a riqueza de alusões, a fragmentação temporal, as múltiplas narrativas do original? –, Watchmen: O Filme respeita e faz jus à raiz.

A direção de Snyder, surpreendentemente contida e sutil – pelo menos até a invasão do presídio, quando o filme descamba para a velha ultraviolência – é um fator importante, mas o grande trunfo de Watchmen é o elenco: seus grandes e quase desconhecidos leads, como Jackie Earle Haley (Pecados Íntimos), como Rorshach, Patrick Wilson (de Invocação do Mal), como o Coruja, Jeffrey Dean Morgan (The Walking Dead), como o Comediante, e especialmente Billy Crudup (Quase Famosos), como o Dr. Manhattan, traduzem à perfeição a complexidade emocional dos personagens da HQ. Certas escolhas são menos que inspiradas – Malin Åkerman (Antes Só do que Mal Casado), como Espectral, era uma atriz inerte então e continua sendo hoje, e Matthew Goode (Match Point: Ponto Final), como Ozymandias, é mais afetado que ameaçador –, mas a aposta em nomes talentosos e pouco conhecidos funciona a favor da imersão no mundo distópico de Moore/Gibbons.

E a obediência à fonte não é tão canina assim: há várias pequenas sacadas que satirizam não a iconografia das HQs, como fazia o original, mas a dos filmes de super-herói e até do próprio cinema, como a armadura de Ozymandias, que parodia a couraça com mamilos do Batman & Robin de Joel Schumacher (1997), ou as referências a filmes como Apocalypse Now (1979) e Dr. Fantástico (1964). Nesse sentido, talvez a maior realização de Snyder com a obra seja ter conseguido preservar integralmente a subversão do original em outra linguagem, algo imensamente valorizável diante do fastio provocado pela perspectiva de mais uma fornada pouco imaginativa de filmes Marvel ou DC. Aliás, falando nesta última, Watchmen, com sua estética pesarosa e sombria, já anuncia as pretensões mais “adultas” da outra gigante dos quadrinhos no cinema, levada a cabo por Snyder em filmes como O Homem de Aço (2013) e Batman vs. Superman: A Origem da Justiça (2016), que ele assumiria após a boa repercussão deste aqui.

O uso da música, infelizmente, não é tão bem-sucedido: certas cenas ganham uma ressonância emocional impensada com a escolha criativa de canções pop – penso na introdução, em que o Comediante é assassinado ao som de “Unforgettable”, de Nat “King” Cole, ou na sequência do funeral, ao som de “The Sound of Silence”, de Simon & Garfunkel –, enquanto outras soam redundantes e até kitsch – Snyder certamente imaginou um efeito irônico ao casar “Hallellujah”, de Leonard Cohen, com o momento em que o Coruja tem seu primeiro orgasmo em anos, mas o efeito é o oposto: tudo soa muito sincero, e cafona.

E há suficientes grandes cenas para compensar o ritmo desigual do filme: a brilhante abertura, em que dioramas animados apresentam em pinceladas incisivas o mundo do Dr. Manhattan e companhia; toda a sequência da origem do deus azul; a invasão do apartamento do Comediante por Rorshach (admito que a maior parte delas está na primeira metade do filme). Mesmo a grande mudança perpetrada por Snyder no enredo original, em que o Dr. Manhattan, e não um monstro criado por Ozymandias, lidera a destruição final, soa instigante e não em desacordo com o espírito da obra de Moore.

Zack Snyder pode errar a mão em certas cenas, tornando-as tão enfáticas ou infladas por efeitos que o espírito do original se perdeu, mas, só por conseguir reproduzir boa parte da magia de uma das criações mais instigantes dos quadrinhos – e, por extensão, de qualquer literatura – dos últimos trinta anos, Watchmen já valeria a conferida. Se não por isso, quantos filmes de super-herói que você conhece podem se gabar de ostentar um orçamento nível A com um elenco de desconhecidos, ou, ainda, uma honesta cena de sexo (anátema em qualquer coisa da Marvel ou DC até aqui), ou então – santa ousadia! – um glorioso pênis azul em repetidos nus frontais masculinos?