No Brasil 2021 de Jair Bolsonaro, uma mulher livre, dona do próprio corpo e contrária a opressão masculina incomoda muita gente. “Os Últimos Dias de Gilda”, série disponível na Globoplay, mostra muito bem isso. 

A produção exibida na Berlinale Series neste ano estreou no Canal Brasil em novembro do ano passado e conta com quatro episódios de 25 minutos. Baseada na peça homônima de 2004, “Os Últimos de Gilda” Gilda é uma mulher livre, no mais amplo sentido da palavra. Tanto desapego e independência incomoda a vizinhança, principalmente a esposa de um pastor com aspirações eleitorais.

A série marca mais uma parceria entre Karine Teles e Gustavo Pizzi do bem-sucedido “Benzinho” e de “Riscado”.  O Cine Set teve a oportunidade de falar com o diretor durante a Berlinale sobre como transpor a peça para o streaming, as temáticas de “Os Últimos Dias de Gilda” e o desafio de fazer audiovisual no Brasil atual.

 

Cine Set – Gostaria de saber sobre a escolha pelo formato seriado. Por que desta opção? 

Gustavo Pizzi –Tudo começou em 2004 quando eu vi a peça pela primeira vez. Inicialmente, a ideia era fazer um longa-metragem. O tempo passou, o mundo foi mudando, fiz outros projetos e surgiu a oportunidade de fazer em um formato seriado. Pensei em como isso poderia ser feito sem ficar atrelado a uma grande quantidade de temporadas e sim naquilo que considerasse bom. O Canal Brasil foi muito incrível neste sentido ao dar total liberdade.  

Desta forma, topei entrar na série tentando entender como dizer o que pretendíamos neste formato. ‘Como daria para pensar este formato e o que poderíamos descobrir através dele?’, eram perguntas norteadoras neste processo. A decisão por quatro episódios veio por conta do texto que tínhamos em mãos. 

Isso difere do que se tinha até tempo atrás quando uma série tinha um compromisso relativo à grade de programação da emissora, sendo necessário um episódio para estrear em determinado dia por tantas temporadas. Hoje, há também a opção de realizar um produto capaz de ser consumido de outro modo graças a diferentes processos de distribuição. 

Se você juntar os quatros episódios de “Os Últimos Dias de Gilda” dará o tamanho de um longa-metragem, mas, não irá funcionar porque cada gancho, cada virada, de cada episódio é importante para entrar naquele universo. 

Cine Set – A peça em que se baseia “Os Últimos Dias de Gilda” é um monólogo, enquanto a série apresenta mais personagens e locais. Como foi fazer esta adaptação? 

Gustavo Pizzi – Foi bem desafiador passar este texto para o audiovisual. A peça traz a personagem sozinha e falando o tempo todo, logo, era bastante verborrágica. Não há grande linearidade, pois, a protagonista fala de algo em um momento, depois aborda outro e, mais adiante, volta ao tópico anterior.  

Porém, ao mesmo tempo, estes relatos sempre traziam imagens que já surgiam na peça. Com isso, fomos trabalhando estas falas e um trecho delas acabava virando um personagem ou uma situação enorme ou um episódio inteiro. A essência do que era a peça do Rodrigo de Roure está lá, mas, trazendo o mundo em que vivemos hoje para entender o que está ocorrendo ao nosso redor.  

Cine Set – A peça é de 2003, a série foi gravada em 2018 e está sendo lançada, agora, em 2021. Diante disso, você sente uma certa atemporalidade temática em “Os Últimos Dias de Gilda” capaz de falar com o público em diferentes períodos históricos, políticos e sociais? 

Gustavo Pizzi – Eu nunca quis estabelecer um tempo específico ainda que ache que a obra fale sobre um período entre 2016 até 2025. Em 2004, claro, era outra Gilda a que imaginava e que comecei a escrever com a Karine. Ao iniciar o roteiro para série, porém, já era um outro mundo ainda que o texto permanecesse o mesmo com aquela mulher forte tentando viver a vida dela da melhor maneira forma possível. 

Agora, tudo o que acontece na vida são sintomas sobre as coisas maiores que a rodeiam, permeando a Gilda que poderia ter existido na Idade Média ou do século XVI em diante. 

Cine Set – Para quem assiste “Os Últimos Dias de Gilda”, é perceptível uma brasilidade muito forte no texto e na ambientação. Agora, entretanto, a série está ganhando o mundo a partir do Festival de Berlim. Qual sua expectativa para a reação no mercado internacional? 

Gustavo Pizzi – De fato, é uma série muito brasileira, mas, ao mesmo tempo, também do mundo todo. Acabei de falar com uma jornalista polonesa que disse: ‘também precisamos da Gilda por aqui’. Foi uma pena não termos a experiência de um festival presencial em que podemos conversar com o público diretamente.  

A Gilda, na minha visão, é de todo lugar. Há uma universalidade nesta busca pela liberdade de ser quem é, de se viver do jeito que se acredita sem fazer mal a ninguém. Ela não topa uma imposição externa sobre a própria vida. Isso é uma questão para todo mundo em todo lugar desde sempre. 

Cine Set – Partindo do que você cita, algo que chama a atenção na Gilda é o pensamento próprio, de não ser pautada por alguém ou alguma instituição, contribuindo para o choque com a vizinhança. Em um mundo tão digital, nesta ‘câmara de eco’ com a repetição de discursos para uma bolha, você acha que a Gilda seria ainda mais importante para o que estamos vivendo hoje em uma remodelação da história? 

Gustavo Pizzi – Apesar de não vermos as personagens online diretamente, há momentos em que “Os Últimos Dias de Gilda” aborda isso ao vermos a consequência da internet. Temos o pastor com o candidato passando para seus fiéis algo que já vem pronto, de outro lugar. A Gilda representa esse espaço de perseverança e entendimento. 

A série mostra como a gente se coloca contra o que está acontecendo, quem é o nosso verdadeiro inimigo. Desde as eleições de 2018, temos visto amigos de infância rompidos, famílias divididas pela questão política – na minha própria, teve gente que disse que iria votar no Bolsonaro e eu falei ‘como?’. É preciso olhar para trás e tentar entender como chegamos a esse lugar. O fascismo sempre esteve presente, nunca foi embora, infelizmente, mas, hoje em dia, muita gente que não é fascista está reproduzindo um ideário fascista sem se dar conta disso.  

Como é que a gente traz de volta a força da argumentação? Afinal, quando acaba o argumento, perde-se tudo. Ninguém ganha. Se eu falo A e a pessoa do outro lado fala B sem escutar o que falei está errado e vice-versa. É preciso se avaliar e avaliar o outro para tentar de alguma maneira trazer luz ao que ocorre. Precisamos enfrentar e não aceitar que é assim.  

O poder que está colocado sobre nós, apesar dos pesares, foi eleito democraticamente pela maioria da população. Logo, como entendemos este momento e nos colocamos para fazer frente a isso, retomando um momento de crescimento e compreensão da sociedade? 

Cine Set – Como você enxerga o momento do audiovisual brasileiro desde a eleição de 2018? 

Gustavo Pizzi –Como o Kleber Mendonça Filho e o Juliano Dornelles colocam em “Bacurau”, estamos, de fato, sob ataque. Este é momento muito duro em que se percebe um plano muito claro de se acabar com a nossa indústria cultural e tudo ligado ao bem público, incluindo, a educação e à saúde.  

Em um plano mais amplo, isso está presente dentro de um contexto do capitalismo que estamos vivendo, da globalização. Precisamos, claro, buscar este ponto de vista macro para sabermos onde estamos. No cinema, desde o golpe que colocou o Michel Temer no poder, começamos a sentir ataques pontuais. Com o Bolsonaro, isso se torna muito claro. Apesar de ainda existir, a Ancine está estagnada. Tiraram pessoas de posições-chaves, os editais pararam.  

Precisamos reconhecer que existe um pensamento inteligente de destruir. Não é uma desorganização pura e simples; há um plano por trás disso bem construído. O Bolsonaro não fez como o Collor; ele simplesmente deixa sem funcionar até o ponto de dizer que não serve mais para nada. É algo muito covarde de destruição de um setor que empregava 300 mil trabalhadores muito bem-remunerados. A indústria do cinema gerava mais receita do que, por exemplo, a farmacêutica. 

Hoje, apesar de termos players importantes, eles não conseguem ainda absorver toda a indústria. Pelo que vejo, muita gente que trabalha com cinema está começando a fazer outras coisas até mesmo em atividades não ligadas ao ramo. Muitas produtoras e empresas estão falindo, pois, não há mais trabalhos nem empregos, algo além da pandemia. 

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