Destaque da Mostra Outros Olhares do Festival Olhar de Cinema 2022, “Garotos Ingleses” é o novo curta-metragem dirigido e escrito por Marcus Curvello. Com uma filmografia premiada em festivais brasileiros nos últimos anos por obras como “Mamata” (2017), “Regresso de Saturno” (2017), “Joderismo” (2019), ele retorna aos curtas após lançar, no ano passado, o primeiro longa da carreira intitulado “Eu, Empresa” co-dirigido com Leon Sampaio.  

Em “Garotos Ingleses”, ele trabalha ao lado do parceiro e amigo Murilo Sampaio em uma obra gravada no momento mais mortal da pandemia da Covid-19 no Brasil. Misturando drama e humor, eles trazem a curiosa história do Cemitério dos Ingleses, em Salvador. A produção de 15 minutos acompanha a dupla investigando a origem do cemitério, o possível DNA inglês e quem pode ser enterrado no “cemitério com a mais bela vista da cidade”.   

O Cine Set conversou com Marcus e Murilo sobre o desenvolvimento do curta e escolhas narrativas de “Garotos Ingleses”:  

Cine Set – Como surgiu a ideia e como foi a relação entre vocês durante o projeto já que dividem roteiro e a atuação em “Garotos Ingleses”? 

Marcus Curvelo – Estamos no terceiro curta juntos. Somos de Salvador e nossa aproximação aconteceu quando dividimos uma moradia no Rio, em 2018. Estava em um momento difícil e queria fazer um filme com o apoio de um amigo para sair daquela bad. Isso tudo de forma muito simbólica e não direta como, por exemplo, emprestar dinheiro ou uma casa (risos). Fizemos “A Destruição do Planeta Live”, exibido na Mostra de Tiradentes do ano passado.   

Desde então, nos conectamos muitos por contas das nossas melancolias, vontades e, principalmente, da forma como lidamos com o fracasso, dançando e rindo dele. Saímos do lugar da sensação de derrota para a morte e o transformamos em um espaço de rir dela para poder não morrer. Fazer filme virou um ato de sobrevivência.   

Nisso, surgiu a ideia de “Garotos Ingleses”. Foi justo na pior onda da pandemia quando morriam quatro mil pessoas por dia. Estava morando novamente com os meus pais e o Murilo também havia voltado para Salvador. Pensamos o que estava nos cercando e imediatamente associamos a morte, desesperança, cemitério. Veio a ideia de fazer um filme com uma proposta ligada a ‘antes de você ir embora’.  

Quase de imediato, a primeira sugestão foi nos colocar dançando juntos no filme. Seria uma dança para não morrer. Uma dança em cima do túmulo. Começamos a brincar com isso e o Murilo propôs como argumento de fazer algo no Cemitério dos Ingleses.  

Murilo Sampaio – Essa era uma ideia que já me atravessava. Muitas coisas surgiam durante o nosso convívio, conversas, indignações, choros e risos. De mil coisas que não dizem, uma delas disse. O argumento partiu da percepção da manutenção de privilégios elitistas em Salvador e de questionar o direito de morrer dentro de um contexto de banalização da morte. Estava morrendo muita gente, não tínhamos vacina, perguntávamos como iríamos sobreviver e, se morrermos, onde seríamos enterrados.   

Descobrimos o cemitério que é dedicado somente a pessoas herdeiras do Reino Unido. Logo, perguntamos o motivo disso existir ainda hoje e do Estado seguir financiando e protegendo estes espaços. Quem pode morrer? Como pode morrer dentro desta cidade?   

Neste contexto de dor e melancolia, entra o nosso sarcasmo e ironia observando ainda o fato do cemitério ficar em uma área nobre de Salvador com uma vista fantástica ao lado do Iate Clube, um local que a gente nem consegue entrar (risos). Isso tudo, claro, sem esquecer da crítica e indignação social. Acredito que “Garotos Ingleses” seja o nosso filme mais político entre as nossas três produções até aqui.  

Cine Set – Quanto tempo levou para gravar o filme?  

Murilo Sampaio – Foram quatro diárias em um mês com um espaçamento de duas semanas. Isso por conta de fatores como a chuva.  

Marcus Curvelo – Gravar o filme foi bem tranquilo, na verdade.  

Cine Set – Gostaria que vocês falassem sobre o humor dentro de “Garotos Ingleses”, afinal, o curta aborda questões violentas e socialmente delicadas. Como achar o tom da comédia dentro da desgraça?  

Marcus Curvelo – A própria pompa, a arquitetura e a vista do Cemitério dos Ingleses em contraste com as nossas presenças nada solenes ou sacras passando por aqueles jazigos contribui para este processo do riso. Ali estão, por exemplo, pessoas envolvidas no tráfico de pessoas escravizadas, logo, estamos rindo deles. Mas, isso não é gratuito: o Murilo contextualiza durante o curta.  

Murilo Sampaio – A obra de Marcus, aliás, é permeada pela ironia. Só que, desta vez, tocamos em temas muito delicados partindo da perda estabelecida e do lugar de fala que temos como pessoas pobres e eu como pessoa preta de discutir sobre isso.   

Não que o fato de eu ser preto signifique que possa falar sobre qualquer coisa que afeta a negritude ou sobre racismo com escárnio, mas, neste momento, estamos lidando com a institucionalização dos preconceitos e privilégios que afetam as nossas vidas. Por isso, é possível brincar com o riso no rosto. É uma forma de lidar com a dor.  

Marcus Curvelo – E é um riso melancólico carregado de muita coisa. Estamos ‘chorrindo’, talvez, como uma estratégia de sobrevivência. 


Cine Set – Em certo momento de “Garotos Ingleses”, há uma troca no formato da imagem com a utilização na vertical, semelhante ao que vemos em vídeos das redes social. Isso já estava pensado desde o início ou foi algo que surgiu nas gravações? De que modo isso aproxima o curta das pessoas?  

Marcus Curvelo Sim, foi pensado anteriormente. Idealizamos o momento em que o Murilo falava frontalmente como uma espécie de Stories até como forma de buscar o elo com este personagem. De fato, é um trecho em que, ao mesmo tempo, você está mais feliz e triste.  

Murilo Sampaio – Observo como o momento mais real com menor atuação no sentido estrito de performar, mas, o mais triste.  

Marcus Curvelo – Curioso que “Garotos Ingleses” é rotulado como documentário, mas, estamos atuando ali, criamos este percurso em que a gente não quer achar o cara e nem ser enterrado lá de jeito nenhum (risos). O celular serve para quebrar esta perspectiva, pois, quem achava que era ficção se questiona amplificado pelas questões pessoais colocadas ali.  

Murilo Sampaio – Por outro lado, por mais que seja ficcionalizado, é sobre nossas vidas.