Poucos fãs de cinema, e menos ainda de música, parecem conhecer o nome de Donn Alan Pennebaker, o que é uma lástima. Como D. A., ele deu ao cinema alguns de seus momentos definitivos, numa carreira em que vigor, intrepidez e inteligência sempre andaram juntos.

O seu legado, contudo, não pode ser medido somente por suas contribuições à chamada Sétima Arte. Na verdade, os fãs de música é que deveriam erguer-lhe uma estátua, como provam os trabalhos do diretor escolhidos para a 13ª edição brasileira do Festival In-Edit, sobre documentários musicais, que acontece entre os dias 16 e 27 de junho.

Graças a D. A. Pennebaker podemos revisitar obras tão extraordinárias quanto Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1973), sobre o cantor inglês David Bowie; Rock ‘n’ Roll Music (1992), sobre o pioneiro do rock Chuck Berry; ou Jimi Plays Monterey (1986), que traz a performance completa do guitarrista no primeiro dos megafestivais – onde, aliás, ele entrou como um desconhecido e saiu como um deus. Esses filmes foram fundamentais para gravar a imagem desses músicos no inconsciente coletivo do século passado, no qual, empurrado por um novo poder visual, captado com pioneirismo e agudeza únicos por Pennebaker, o trio fincou o pé.

Esses exemplos já seriam suficientes para assegurar a lenda do diretor americano junto ao público roqueiro, mas ainda estão a uma boa distância, em qualidade e importância histórica, dos seus trabalhos mais celebrados: Dont Look Back (1967 – o “Dont” é sem o apóstrofo mesmo), registro da turnê inglesa de 1965 do cantor e compositor Bob Dylan, uma das maiores realizações do Cinema Direto americano, se não a maior; Monterey Pop (1968), o documentário sobre o festival onde Hendrix e muitos outros surgiriam para o mundo, que deu o tom e o modelo para os registros épicos de Woodstock: 3 Dias de Paz, Amor e Música (1970), de Michael Wadleigh, Gimme Shelter (1970), dos irmãos Albert  e David Maysles e Charlotte Zwerin, e todos os docs sobre shows e festivais que viriam depois; e Depeche Mode 101 (1989), sobre uma turnê do grupo inglês Depeche Mode, que dá destaque a um grupo de fãs que viaja com a banda, e que pode muito bem ter inspirado a cultura dos… reality shows.

Toda essa influência pode ser avaliada em primeira mão pelo público brasileiro, graças à seleção do In-Edit, que exibe, além de Dont Look Back e Monterey Pop, os curtas Daybreak Express (1953), Lambert and Co. (1964), Little Richard (1970) e Alice Cooper (1970). Todos estão entre os exemplares mais importantes da aproximação entre o cinema e a música (principalmente o rock), e sua presença em terras brasileiras é uma oportunidade valiosa para disseminar a obra do cineasta junto a um público mais amplo, reconhecimento, aliás, que já lhe é devido há bastante tempo.

Seguem, então, mais fatos sobre a vida e a carreira do homem:

 – D. A. Pennebaker nasceu em 1925 na cidade de Evanston, Illinois, e viveu até 2019. Seu último trabalho, Unlocking the Cage (2016), sobre a luta pelos direitos dos animais, foi lançado quando o diretor já estava com a provecta idade de 91 anos (!); 

 – Ele era filho de um pai fotógrafo e de uma dona de casa, e tinha um pendor especial para a engenharia. Depois de servir na Marinha durante a 2ª Guerra Mundial, Pennebaker se graduou no ramo em Yale, e fundou uma empresa que, anos depois, criaria o primeiro sistema computadorizado de reserva de passagens aéreas do mundo; 

 – Esse mesmo talento o levaria a inventar um dos primeiros modelos de câmera portátil com sistema de captação de som integrado, engenhoca que seria decisiva para a revolução do chamado Cinema Direto nos EUA;

 – O Cinema Direto é um capítulo especial na história e evolução do gênero documentário. Criada nos Estados Unidos no final da década de 1950, por um time de colaboradores que envolvia, além de Pennebaker, cineastas como Robert Drew, Richard Leacock e os irmãos Maysles (e, sempre é bom lembrar, sob inspiração do Cinéma Vérité francês, e em paralelo a pesquisas semelhantes no Canadá), essa linhagem de docs abria mão de procedimentos tradicionais, como narração, entrevistas e letreiros explicativos, para se concentrar em acompanhar um personagem da maneira mais discreta e não-intrusiva possível. Essa abordagem abria uma janela para a intimidade dos protagonistas, resultando em cenas inesquecíveis, como o flagrante do nervosismo de Jacqueline Kennedy antes de um discurso, em Primárias (Drew, 1960), sobre a escolha de John F. Kennedy para concorrer à presidência dos EUA naquele ano, ou o “estalo” de Bob Dylan para uma nova música durante um aquecimento ao piano, registrado com maestria por Pennebaker em Dont Look Back, a sua grande contribuição a essa escola (cultivada no Brasil por nomes como Paulo César Saraceni, Leon Hirszman e, mais recentemente, João Moreira Salles); 

 – Junto com o cinema, havia a música. Antes do Cinema Direto, de Monterey e de todo o resto, Pennebaker estrearia no audiovisual com o curta Daybreak Express (1953), uma montagem rápida de cenas do metrô de superfície em Nova York, editada de forma a acompanhar a música com o mesmo nome de Duke Ellington, um dos gigantes do jazz. Segundo Pennebaker, Duke não só tomou conhecimento do filme como aprovou a ideia; 

 – Dont Look Back, em cartaz no In-Edit, é uma daquelas confluências de pessoas, locais e momentos que mais parecem predestinação. Dylan já era reconhecido como um talento importante pelo público ligado à música folk, mas ele abandonou esse nicho quando resolveu gravar com uma banda de rock, gênero então desprezado como um modismo juvenil. A câmera de Pennebaker o encontra bem nesse momento, e registra toda a tensão dos encontros de Dylan com a imprensa, que não entendia o endosso de um artista “sério” ao rock, e com o público, que o chamava de “traidor do movimento” muito antes dos punks; 

 – O projeto deu tão certo que Dylan convidou D. A. a registrar sua turnê europeia seguinte, ainda mais turbulenta que a anterior. Dessa vez, no entanto, Dylan rejeitou o corte entregue por Pennebaker, que teria ficado parecido demais com Dont Look Back, e montou sua própria versão, o alucinado Eat the Document (1972), que nunca ganhou os cinemas, mas forma o material mais importante do grande documentário de Martin Scorsese sobre o cantor, No Direction Home, lançado em 2005; 

 – Monterey Pop, também no In-Edit, foi a segunda vez que o raio caiu na filmografia de Pennebaker. A obra virtualmente inventa a arte dos concert films, ou filmes sobre shows. D. A. intuiu que o grande festival de artes e artesanato na cidade californiana, idealizado por John Phillips, do The Mamas and the Papas, seria um evento significativo para a cultura jovem da época, e a história estava do seu lado. Hoje nós damos de barato a importância fundamental de nomes como Janis Joplin, Grateful Dead, Jefferson Airplane, Otis Redding e o já citado Hendrix para a história da música popular, como se eles sempre fizessem parte dela, mas quase todos esses artistas eram perfeitos estranhos para as plateias de Monterey Pop, que os descobriram graças a esse filme. Mais importante, Pennebaker dedica um quarto de sua duração (86 minutos) à sequência final, um deslumbrante dueto entre os mestres indianos Ravi Shankar, na cítara, e Alla Rakha, na tabla, um aceno à fraternidade global que soa ainda mais importante hoje do que há quarenta anos atrás; 

 – Com as portas abertas por esses dois grandes trabalhos, Pennebaker continuaria a produzir documentários marcadamente autorais, uma raridade para quem faz carreira no gênero. Pelos anos seguintes, ele se dedicaria principalmente a figuras de sua admiração, como o romancista Norman Mailer (Town Bloody Hall, 1979), o empresário John DeLorean (DeLorean, 1981) e o compositor Stephen Sondheim (Original Cast Album: Company, de 1971, sobre as gravações desse musical sublime), além de outros nomes do rock, como John Lennon (Sweet Toronto, 1971) e Jerry Lee Lewis (The Story of Rock & Roll, 1991); 

 – Seus trabalhos mais conhecidos desde então são o já mencionado 101, sobre a banda inglesa Depeche Mode – onde, diferente de seus concert films anteriores, Pennebaker mistura apresentações da banda e cenas de bastidores com uma espécie de diário de viagem de um grupo de fãs, vencedores de um concurso para aparecer num “filme sobre o DM”. O sucesso do doc é creditado como a inspiração para os pioneiros reality shows da MTV, The Real World (1992-2017) e Road Rules (1995-2007), donde se pode concluir que sem Pennebaker talvez não houvesse Gil do Vigor –, The War Room (1993), sobre os bastidores da campanha de Bill Clinton à presidência norte-americana em 1992, e Elaine Stritch: At Liberty (2004), sobre a grande atriz e cantora da Broadway. Em vários desses filmes, a direção é assinada por D. A. e sua grande parceira nos filmes e na vida: a também documentarista Chris Hegedus, que integra o cast do In-Edit desse ano, para falar justamente sobre vida e obra de Donn Alan Pennebaker.

IN-EDIT BRASIL 2021 

Além de Pennebaker, o In-Edit Brasil desse ano tem uma programação extensa e variada para os fãs de música e cinema – o que corresponde a 100% da humanidade, mas o privilégio dessa vez é só nosso:

Na mostra “Panorama Brasileiro”, o festival apresenta personagens como João Ricardo (Secos & Molhados), Jair Rodrigues, Luiz Melodia, Chico Mário (irmão de Henfil e Betinho), Alzira E, o revolucionário maestro e compositor José Siqueira, o rapper Speedfreaks, a banda Made in Brazil, um road movie com Yamandu Costa e o guitarrista argentino Lúcio Yanel (coisa finíssima), Zeca Baleiro apresentando os sons do Maranhão, hip-hop nacional (com Marcelo D2, Mano Brown, Karol Conká), e vários outros.

Já em “Panorama Mundial”, o festival traz 22 títulos inéditos, sobre artistas contemporâneos e que marcaram a música internacional das últimas décadas; entre eles, a banda dinamarquesa Lukas Graham, a pioneira do rock Suzi Quatro, o DJ Moby,  o cantor Phil Lynott (do Thin Lizzy), a banda inglesa IDLES, o cantor Shane MacGowan (vocalista do The Pogues),  o cantor Shannon Hoon (Blind Melon), o cantor chileno Jorge Farías (El Negro Farías), Poly Styrene (vocalista da banda punk X-Ray Spex), e  a banda pop The Go-Go’s, que entrou para a história da música como a primeira, e até hoje a única, banda formada só por mulheres a chegar ao 1º lugar nas paradas de álbuns mais vendidos da revista Billboard.

A Programação Paralela do festival traz debates com convidados nacionais e internacionais, uma masterclass com o cineasta Marcelo Machado, e shows inéditos, concebidos em diálogo com os filmes da programação, com a participação de artistas como Alzira E, DJ Hum, a banda Made in Brazil, o grupo Gritando HC, além de uma homenagem musical ao maestro e compositor José Siqueira.

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