O cinema brasileiro tem muito o que comemorar neste 2015: produção regular, diversidade de realizadores e propostas, boa repercussão em festivais estrangeiros. Ainda ficamos devendo em muita coisa, como uma estrutura sólida de financiamento e distribuição, ou um alcance real junto ao público, mas o fato é que o cinema brasileiro anda vivo e atuante como não se via desde a década de 1960.

2015 também marca o vigésimo aniversário do filme sem o qual, provavelmente, não haveria nada disso: Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati. A obra, que simbolizou a chamada retomada do cinema nacional, após o período de trevas do início da década de 1990, começa a ser reavaliada numa outra chave, não mais como um “acidente feliz”, que tomou o lugar de filmes mais merecedores, como Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles e Daniela Thomas, ou Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira, mas como uma produção relevante e corajosa à sua maneira. Trazendo um retrato debochado, satírico, mas compassivo, da corte luso-brasileira no início do século XIX, Carlota revela, hoje, uma importância além da histórica para o cinema nacional.

Para o espectador de 2015, duas coisas saltam de cara aos olhos (e ouvidos): o idioma trilíngue da trama, medida de segurança num cenário nacional carente de perspectivas; e o apuro da direção de arte, incomum para o cinema brasileiro em qualquer época, quanto mais em 1995. É importante lembrar que, pouco antes de Carlota, o cinema tupiniquim virtualmente não existia. Com o desmanche da Embrafilme, órgão criado pela ditadura para financiar a produção de filmes no Brasil, em 1990, a já esquálida filmografia nacional entrou em colapso. Até o surgimento das novas leis de incentivo, na segunda metade da década, os poucos filmes brasileiros eram apostas a fundo perdido, levados literalmente na cara e na coragem por seus realizadores. Foi o sucesso inesperado de Carlota, que conseguiu arregimentar 1,5 milhão de espectadores sem ser um filme da Xuxa ou dos Trapalhões, que provou que fazer filmes no Brasil podia, mais uma vez, ser viável e dar lucro.

A trama: a fim de entreter uma nobre e espevitada inglesinha (Ludmila Dayer, ótima), o seu tutor (Brent Hieatt) resolve contar para ela a história da princesa espanhola que, por contingência política, foi obrigada a se casar com o herdeiro da coroa portuguesa, o nosso D. João VI. Notoriamente feia, voraz no sexo e ambiciosa, Carlota Joaquina (vivida por Dayer na infância e Marieta Severo na maturidade) teve uma vida conturbada, entre o patético e o trágico, e sua trajetória resume tanto o ridículo da nobreza brasileira quanto a decadência da era monárquica como um todo.

À luz da revisão histórica do período colonial, que ganhou força na década passada, o retrato de Carla sobre o período parece errar a mão na caricatura: é assim, por exemplo, com o burlesco D. João vivido por Marco Nanini. Sempre com uma coxa de frango na mão e um olhar abobalhado, o monarca ainda assim ganha alguma densidade e delicadeza, graças aos instintos certeiros do ator. O nível geral do elenco também não é homogêneo, com alguns pecando pelo excesso de histrionismo (a própria Marieta, um pouco estridente; Chris Hieatt, como Lord Strangford) e outros bons intérpretes sendo mal aproveitados (Antônio Abujamra, Marcos Palmeira). O desenvolvimento da trama também é desigual, com o começo cheio de graça desembocando num segundo e terceiro atos um pouco apressados. Quem sofre, principalmente, é a própria Carlota, que vê suas desventuras perdendo terreno para a necessária contextualização histórica, defeito que provavelmente seria menor se houvesse mais tempo de filme.

Críticas postas, sobram elogios para a já citada direção de arte, que cria, com poucos e certeiros recursos, uma imagem alucinada e colorida do Brasil colonial; a direção segura e delicada de Carla, com planos precisos e bom timing cômico; a fotografia de Breno Silveira, ele próprio um diretor de sucesso e um dos artífices na consolidação do novo cinema brasileiro, com os sucessos Dois Filhos de Francisco (2005) e Gonzaga – De Pai pra Filho (2012); o uso da música, empregada com maior sutileza do que o costume no cinema nacional; e a própria abordagem do tema, que envolve a paródia num contexto maior de fascínio e repulsa pela aventura portuguesa no Brasil. A impressão parece ser a de uma ópera cômica, o que já sugeria o rumo posterior da carreira de Camurati: afora o singelo Copacabana (2001) e a fraca comédia Irma Vap – O Retorno (2006), a cineasta ficaria mais e mais ligada à arte operística, sendo a maior especialista nacional em filmagem de óperas.

Se Carlota Joaquina não é, em si, o produto mais notável do movimento hesitante e multifacetado que surgiria em 1995-96 – Baile Perfumado é uma realização mais madura e ousada –, o filme ainda assim apontou caminhos para o cinema brasileiro, mostrando o potencial lucrativo das comédias e a necessidade de profissionalização técnica, como forma de atrair o público e rivalizar com a produção norte-americana. Um bom filme, e merecido marco numa época em que cinema, no Brasil, era quase um ato de abnegação.