“Se eu estava sem dinheiro, eu roubava. Nós mandávamos em tudo. Nós pagávamos tiras, advogados, juízes. Ninguém se metia conosco, e tudo podia ser tomado. Agora essa vida acabou. Essa é a parte mais difícil: agora eu vou ter de ser como todo mundo, um joão-ninguém. Vou ter de passar o resto da minha vida como um otário”.

Com essa fala, cheia de repulsa pela vida ordinária de nós todos, e cujo único arrependimento é ter descido tão fundo das nuvens, termina o maior filme da década de 1990, e um dos maiores do cinema, ponto. Não, tem mais: falta aquele olhar frio, de aço, do maníaco Tommy (Joe Pesci), encarando o espectador e atirando em sua direção, enquanto flashes da trajetória vertiginosa de Henry Hill (Ray Liotta) explodem na tela, ao som da versão debochada de Sid Vicious para “My Way”, de Frank Sinatra.

Agora sim. C’est fini Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), a obra-prima de Martin Scorsese, ele próprio um dos grandes diretores americanos, e só resta ao espectador absorver o impacto de tudo o que se passou nas duas horas e meia anteriores. Sugestão do crítico: melhor saborear outras, inúmeras vezes, esta rara iguaria, capturando a cada repeat um detalhe novo, dos infinitos matizes de câmera e luz aos detalhes retrô dos cenários e figurinos, para não falar nos diálogos, que já nasceram eternos.

Tanto oba-oba só pode ser justificado pela experiência de ver a obra. Mais do que qualquer outro filme sobre a Máfia – só os dois primeiros O Poderoso Chefão rivalizam –, Os Bons Companheiros é uma confluência única entre pulsão criativa, expressão pessoal e virtuosismo técnico, um daqueles casos onde tudo soa exato, irretocável. Até para o mestre Scorsese, que, àquela altura, já havia dado clássicos como Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980) e A Última Tentação de Cristo (1988), Companheiros é um ponto alto, um zênite. Ítalo-americano, nascido e criado em Little Italy, o peculiar bairro italiano de Nova York, o diretor não esconde o fascínio com o estilo de vida mafioso, parte importante do seu imaginário de menino. Com seus ternos chiques, festas vultuosas e respeito (temor) irrestrito da comunidade, os mafiosos de Little Italy eram modelos de sucesso e glamour em meio à vida mesquinha do bairro, e Scorsese já admitiu a tentação de abraçar a rotina, invariavelmente letal, do Trabalho.

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Mas toda a adulação e o status de clássico atribuídos ao filme não eram nem de longe a expectativa de Scorsese e equipe, quando começaram a rodá-lo, em 1989. Os anos 1980 tinham sido duros para o diretor: o tipo de cinema mais pessoal, europeizado, que ele e seus amigos trouxeram para Hollywood na década anterior – não por acaso, a geração conhecida como “Nova Hollywood”, composta por Francis Ford Coppola, Terrence Malick, Robert Altman, Steven Spielberg e outros rapazes brilhantes – foi varrido das telas por uma sucessão de fracassos dispendiosos, batalhas de egos e autodestruição provocada por álcool e drogas. O próprio Scorsese adernou perigosamente no abismo: em 1980, ano de Touro Indomável, o cineasta enfrentava uma séria dependência em cocaína, a ponto de acreditar que estava rodando o seu último filme.

O que se seguiu foi uma obstinada volta por cima. O fracasso do amargo e irônico O Rei da Comédia (1983), até hoje um de seus filmes mais subestimados; o sucesso moderado do indie Depois de Horas (1985); a primeira incursão no cinema industrial, com o bem-sucedido A Cor do Dinheiro (1986); e a volta ao estilo mais intenso e pessoal, com o magnífico A Última Tentação de Cristo (1988). Um por um, esses projetos devolveram a confiança do diretor e da própria indústria, numa ressurreição que nenhum de seus companheiros de geração logrou alcançar.

Ainda assim, o fato é que, para os cinéfilos, nem mesmo Tentação parecia estar à altura de seus grandes filmes dos anos 1970. O diretor ainda tinha algo a provar, e parecia querer superar a si próprio no processo.

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A oportunidade surgiu com Wiseguy. Publicado em 1986, o livro era a biografia do gângster Henry Hill, membro por associação da família mafiosa Lucchese, em alta entre as décadas de 1950 e 80. Uma anedota dos bastidores conta que o autor, Nicholas Pileggi, teria recebido um telefonema entusiasmado de Scorsese, dizendo: “estive esperando por esse livro a minha vida inteira”. Ao que Pileggi devolveu: “e eu estive esperando por essa ligação a minha vida inteira”. A adaptação estava fechada.

O financiamento veio tão logo o ator Robert De Niro foi confirmado no elenco. Parceiro de longa data de Scorsese, ele já havia feito quatro filmes com o diretor, e foi a peça mais fácil do intrincado quebra-cabeças, assumindo o ardiloso Jimmy Conway. Dois jovens em ascensão na virada da década, Ray Liotta (de Totalmente Selvagem [1986], de Jonathan Demme) e Lorraine Bracco (de Perigo na Noite [1987], de Ridley Scott) ganharam os papéis principais, Henry e a esposa Karen Hill. O pulo do gato veio no quarto nome do cast: Joe Pesci. Até então conhecido principalmente por outro filme com Scorsese, Touro Indomável, e por sua ponta em mais um clássico mafioso, Era uma Vez na América (1984), de Sergio Leone, Pesci se sobressaiu enormemente com seu retrato, entre cômico e aterrorizante, do mafioso Tommy DeVito, o inflamável melhor amigo de Henry.

A produção contou com a consultoria de gente da verdadeira Máfia. Segundo o diretor de fotografia, Michael Ballhaus, em diversas cenas Scorsese pedia aos mafiosos presentes para explicar como um golpe ou um tiro afetaria o personagem – pra que lado esguicharia o sangue, o quanto de miolo sairia após a bala –, para desgosto do grande profissional. As filmagens foram tranquilas, seguindo o planejamento meticuloso, quase neurótico, do diretor. O único momento de insegurança foi na exibição-teste – uma exigência da Warner, que financiou e distribuiu a obra, e uma novidade para o grande cineasta. Segundo o relato do produtor Irwin Winkler, cerca de 40 pessoas saíram do cinema nos primeiros dez minutos, mas os que ficaram aplaudiram efusivamente no fim. O filme foi lançado sem cortes ou alterações.

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Poder-se-ia dizer, confortavelmente, que o resto é história. Mesmo esnobado no Oscar (Scorsese perdeu para Kevin Costner e seu Dança com Lobos, uma aposta absurda da Academia; Joe Pesci levou o seu), o filme foi um sucesso de bilheteria e uma rara unanimidade entre os críticos. Para todos os efeitos, Scorsese agora era um sucesso com “s” maiúsculo, o que lhe permitiu se arriscar em novas maravilhas, como A Época da Inocência (1993) e Cassino (1995), espécie de continuação informal de Companheiros.

Mas a verdade é que a história não terminou, e o filme continua a alimentar a corrente sanguínea da indústria. Pelos anos seguintes, décadas, até hoje, 25 anos depois, a alquimia nervosa e desvairada de Companheiros continua a inspirar novos filmes e séries de TV. De imediato, a influência da obra se fez sentir em dois outros clássicos daquela década, Malcolm X (1992), obra máxima de Spike Lee, e JFK: A Pergunta Que Não Quer Calar (1991), idem, de Oliver Stone. Seu retrato nada glamouroso da vida na Máfia, longe do estilo solene, operístico, dos filmes de Coppola e Leone, também foi fundamental na reinvenção das séries policiais da década, e na criação daquela que é considerada a maior série dramática da história da TV: Os Sopranos (1999-2007), de David Chase. Até entre nós o rastilho se fez ouvir: o sensacional Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, é puro Scorsese safra 1990, ressignificado no nosso contexto sombriamente tropical.

Portanto, a maior homenagem que se pode fazer, nestes 25 anos de Os Bons Companheiros, é mergulhar de cabeça nessa obra-prima, e, no processo, descobrir todas as coisas incríveis suscitadas por aquela frase tão simples quanto abrangente, e que continua a ressoar com estrondo em realidades tão distintas quanto as de Little Italy e das favelas cariocas:

“Desde que eu consigo me lembrar, eu sempre quis ser um gângster”.